Parece estranho que um homem de 52 anos afastado do trabalho por problemas de saúde apareça se divertindo na boate de um hotel de luxo, em Búzios, no litoral fluminense, conversando animadamente e relaxando nas camas dispostas em deques ao lado de jovens endinheirados, muitos deles trajando roupas de banho, num evento regado a champagne Moet Chandon e Veuve Clicquot. Foi nesta situação que a reportagem de ISTOÉ flagrou o juiz Flávio Roberto de Souza, que ficou famoso em todo País em fevereiro, ao utilizar os bens apreendidos do empresário Eike Batista, como um Porsche e um piano de cauda. Mas o magistrado tem outros golpes no currículo. Na semana passada, o Ministério Público Federal (MPF) do Rio de Janeiro apresentou denúncia à justiça acusando Souza de peculato, falsidade ideológica, extravio e destruição de autos. Caso seja aceita pelo tribunal, o juiz, que chegou a roubar dinheiro acautelado no cofre de seu gabinete — 150 mil dólares e 108 mil euros —, passará de magistrado a réu. A tese de sua defesa é que ele tem problemas psiquiátricos, o que o flagra em Búzios coloca bastante em dúvida.

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De fato, Souza tirou sucessivas licenças médicas: só este ano foram 75 dias – o período de dolce far niente em Búzios foram após o episódio Eike. Entre 2012 e 2013 foram 200, 20 a mais do que o máximo permitido para o período, de acordo com o relatório produzido a pedido de ISTOÉ pelo Tribunal Regional Federal. No entanto, isso não é suficiente para eximi-lo da culpa, segundo o desembargador André Fontes, responsável por um dos cinco processos administrativos ao qual o magistrado responde (leia quadro). “Mesmo que os problemas psiquiátricos sejam comprovados, uma doença não justificaria as acusações feitas a ele.” Não por acaso, o Ministério Público incluiu na denúncia o pedido de condenação, que conta com a perda do cargo público ou a cassação de eventual aposentadoria. Segundo inquérito policial, Souza inseriu documentação falsa nos autos da operação policial “Monte Perdido”, que confiscou bens do traficante espanhol Oliver Ortiz, para desviar valores apreendidos. O golpe teve início no dia 29 de abril de 2014, quando o magistrado solicitou transferência de R$ 47.190, alegando que o pedido lhe fora feito pela Vara Cível da Barra da Tijuca, zona oeste carioca.

Myllena Knoch, servidora do gabinete, constatou via Receita Federal que os dados bancários eram referentes à loja Auto Peças Rio Castro Daire, e não a uma instância judicial. Ela alertou o magistrado do possível equívoco, o que fez com que ele agisse mais rápido. Souza emitiu ordem à Superintendência da Caixa Econômica Federal para enviar o dinheiro especificamente à loja de automóveis, contrariando o procedimento padrão da justiça. E a fraude continuou em junho, quando outra ordem foi incluída no processo, determinando a transferência de R$ 94.750 para a mesma conta. Mais uma vez, a Caixa Econômica realizou a transação sem questionar.

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Já no início deste ano, em 8 de janeiro, ele incluiu no sistema um documento afirmando que Marcos Cantuária e Joaquim da Silva, nomes inventados segundo constatou a Polícia Federal, pediam restituição do dinheiro, em moedas estrangeiras euro e dólar, que teriam dado ao traficante espanhol Ortiz para comprar um apartamento. Como se não bastasse, Souza incluiu no texto que o Ministério Público Federal (MPF) teria pedido audiência com os dois para esclarecer a origem do dinheiro e estipulou que a quantia deveria ficar guardada no cofre de seu gabinete até que as explicações fossem apresentadas. O MPF esclarece que a última vez que os autos deram entrada na Procuradoria foi em março de 2014, impossibilitando qualquer manifestação do gênero em janeiro de 2015.

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Um dia após a inclusão do documento falso, em 9 de janeiro, Souza ordenou que Myllena pedisse a transferência de R$ 148.581 – dessa vez à Concept Car Comércio de Veículos. Questionado no inquérito, o sócio da loja Rodrigo Gesualdi Júnior afirmou que Souza o procurou em dezembro interessado em uma Land Rover modelo Discovery, 2010, blindada. Ele apresentou o extrato bancário das transferências e o recibo de compra e venda, de 21 de janeiro, no nome de Flávio Roberto.

 

Mas foi no dia 4 de fevereiro que o magistrado chegou ao auge da trapaça, ao retirar os euros e dólares que estavam guardados no cofre de seu gabinete. Ele enviou uma mensagem via whatsapp para seu motorista, Alexandre Barreto Costa, pedindo que o buscasse no dia seguinte, às 6h30, mas mandou que não usasse o carro oficial e, sim, o próprio veículo, um Palio 2002. Confuso, Costa afirmou ter dito que não era recomendável. A resposta levantou suspeitas: “Ninguém vai achar que estou nele”. E, de fato, durante todo o percurso de 64 quilômetros — ida e volta do apartamento onde mora, na Barra da Tijuca, até o gabinete, no Centro, onde ficou menos de cinco minutos — Souza escondeu o rosto atrás de um jornal. O horário fora escolhido a dedo, naquele princípio de manhã, pois no fórum, além deles, só havia uma faxineira como testemunha. “O sumiço do dinheiro somente foi revelado em 27 de fevereiro, quando o juiz substituto da 3ª Vara Federal Criminal realizava um levantamento sobre bens acautelados”, afirmam os procuradores regionais autores da denúncia, Flávio de Moura Júnior e José Augusto Simões.

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Àquela altura, os dólares e euros já estavam bem longe do cofre da Justiça Federal. E o juiz os usou para comprar um apartamento no segundo andar de seu prédio. Os proprietários, Mário Sérgio e Eliete Rufino, receberam quatro depósitos, provavelmente como sinal, totalizando 50 mil reais, todos oriundos da conta da filha de Souza, Camila. O magistrado tentou pagar a primeira parcela — de R$ 549 mil — com as notas estrangeiras. Porém, Rufino achou suspeito e disse que só aceitaria pagamento em reais. Eliete, então, foi levada a uma casa de câmbio pelo motorista de Souza. A segunda e última parcela, de R$ 101 mil, seria quitada no dia 30 de abril. Durante o inquérito policial o juiz admitiu o desvio dos valores apreendidos e que pretendia adquirir um imóvel com eles. Na semana passada, devolveu à Justiça R$ 599 mil por meio de guia de depósito. Mas, levando em consideração o câmbio atual, faltam aproximadamente 700 mil reais a serem pagos.

Tentando ocultar seus crimes, Souza eliminou todos os falsos documentos inseridos nos autos. Mais uma vez, o motorista Costa foi chamado para o ‘serviço’. Ele afirma, em depoimento dado à Polícia Federal ao qual ISTOÉ teve acesso, que Souza entregou-lhe uma mochila ordenando “dar um sumiço” nela. Em seu interior, “vários papéis molhados, com cheiro de álcool e bem queimados”, como o motorista descreveu à polícia. Procurado por ISTOÉ, Costa se mostrou assustado e com medo de dar declarações, principalmente por ser recém-admitido para o cargo de motorista da Justiça Federal, em dezembro. “Caí de paraquedas para trabalhar com ele. Já fui envolvido nessa história toda, não vou me livrar tão cedo. Não quero mais problemas. Não posso colocar meu cargo em risco, lutei muito para conquistá-lo. Só quero seguir a diante e esquecer isso tudo.”

Fotos; MARCOS DE PAULA/ESTADÃO CONTEÚDO/AE 


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