O siciliano Fabio Stassi passava os Natais na casa da avó, que havia imigrado para a Argentina durante a Segunda Guerra Mundial e se esforçado muito para retornar à Itália onde nascera. Era costume entre imigrantes que conseguiam voltar à terra natal deixar lugares vagos na mesa para os da família que não compartilhavam da mesma sorte. Uma das cadeiras, lembra o escritor, a avó reservava para um integrante de outra família. “Era o lugar de Charlie Chaplin. Na minha casa, ele era visto como um parente, porque sua história era a história das pessoas perdidas. Seus sapatos e roupas eram de um emigrante pobre e corajoso, que teria deixado a ilha e ido buscar o seu destino do outro lado do mundo”, conta o autor do premiado “A Última Dança de Chaplin”. O livro chega agora ao Brasil pela Editora Intrínseca depois de ser traduzido para 19 idiomas.

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PERSONAGEM VITALÍCIO
O humorista na pele do andarilho pobre que usava
roupas acima do número, em "Luzes da Cidade", de 1931

Stassi lembra de escolher sempre o assento próximo ao do cineasta.
Ele começou a pesquisa r a vida de Chaplin com dez ano de idade. Foi assim até a morte do ator, em 1977. “O Natal seguinte à sua passagem foi o mais triste da minha vida”, recorda.

O livro, peça de ficção que perpassa os últimos anos de vida do diretor, começa justamente numa noite de Natal. Chaplin, então com 82 anos, recebe a visita da Morte, que aparece em seu quarto a fim de levá-lo para o Além. À maneira de uma Sherazade, Carlitos então propõe à indesejada das gentes que volte no ano seguinte. Em troca, valendo-se de suas gags usando a bengala e o chapéu coco, ele propõe uma experiência desconhecida até então pela inimiga: a diversão. O artista insiste em prorrogar sua permanência no mundo para terminar a criação de seu filho mais novo, então com apenas nove anos. E aí começa o recheio biográfico do livro.

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Charles Chaplin casou-se em 1943 com Oona O-Neil, 36 anos mais nova, e com ela gerou oito filhos, sendo o mais novo o também ator Christopher James Chaplin, nascido em 1962. É para o caçula que o Chaplin do romance escreve uma carta em que conta aspectos no mínimo pouco conhecidos de sua vida e carreira. “Ao contrário do que se pensa, fui um homem terrivelmente sério e obcecado pela perfeição”, diz a mensagem inventada pelo escritor, mas apoiada no seu extenso conhecimento a respeito do personagem. “Os macarthistas que sobreviveram à vergonha do Vietnã ou alguns colegas invejosos poderão finalmente achar os meus discursos delirantes sobre uma sociedade mais justa, mais livre e mais humana como a prova de minha doença mental”, diz outro trecho da missiva. De fato, o Vagabundo foi atacado por macarthistas, nos Estados Unidos, e por nazistas na Europa (“O Grande Ditador” só pôde estrear nos países inimigos da Alemanha).

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Stassi adverte, porém para o perigo das armadilhas ficcionais. “A novela é sempre infiel”, diz o escritor. “Fui fiel à voz interna, ao caráter e aos aspectos da aventura humana que a vida de Chaplin representou para o seu tempo, mas me permiti muitas recriações.” Algumas ousaram a criar cenas de filmes. “Cheguei a ler em um jornal italiano sobre a cena do embalsamador em ‘Tempos Modernos’, mas essa cena nunca existiu. Só no meu romance”, diz.Fabio Stazzi ganhou pelo livro o Selezione Campiello e o Cielo d’Alcamo, dois dos mais prestigiados prêmios literários de seu país. Ele acredita que conseguiu isso por alcançar, a partir da trajetória extraordinária do criador de Carlitos, aspectos universais como o amor, a paternidade e a velhice. “É dessa maneira que a literatura – assim como o cinema – protelam a morte de tudo e todos que amamos.”

Fotos: Roger – Violet/ AFP, Divulgação