Dez minutos transcorreram desde o momento em que Andreas Lubitz tomou a primeira ação para tirar a própria vida até a hora exata em que o Airbus A-320 se chocou contra as encostas dos Alpes franceses, na terça-feira 24. Tirar a própria vida e assassinar 149 pessoas. Durante a queda de 11 mil metros, o piloto de 27 anos não disse uma única palavra. Trancado, sozinho no cockpit, Andreas podia ouvir as batidas de seu comandante do lado de fora da porta blindada. Depois, escutou socos e chutes cada vez mais fortes. Em seguida, manteve-se impassível diante das tentativas desesperadas de pessoas querendo derrubar a barreira intransponível com um machado. Na cabine de passageiros, transformou-se em puro terror o que havia começado como uma incomum redução de altitude – marcada por aquela incômoda variação de pressão nos ouvidos e por um leve frio no estômago. O voo 9525 da companhia alemã Germanwings, entre Barcelona, na Espanha, e Düsseldorf, na Alemanha, virou um dos episódios mais macabros da história da aviação.

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A cena de um piloto tentando arrombar a porta do cockpit enquanto o avião se dirige ao choque fatal poderia estar numa peça de ficção macabra. Mas era real. O tempo na região estava bom. Pelas janelas, os passageiros podiam ver cada vez mais próximas as duras montanhas dos Alpes ainda habitadas por grupos de lobos. A descida se deu em ritmo paradoxalmente lento (por ser similar ao de um pouso normal) e rápido (por levar à morte certa). Em meio aos gritos de desespero dos ocupantes do Airbus, que puderam ser ouvidos nos registros da caixa-preta, Andreas manteve o tempo todo a respiração calma, regular, como se nada de anormal estivesse acontecendo. E permaneceu em silêncio nos últimos dez minutos de sua vida. Havia deliberadamente programado o A-320 para fazer uma descida fatal em direção aos picos rochosos. Os últimos sons que o copiloto ouviu foram os alertas de proximidade de solo emitidos pelo Airbus e as ordens automáticas dadas por uma voz levemente metálica, de tom alarmante, em inglês: “Terrain! Pull up! Terrain! Pull up!” (Terreno! Suba! Terreno! Suba!). Andreas não obedeceu. O choque a cerca de 600 km/h obliterou a aeronave. O maior dos pedaços restantes é do tamanho de um carro popular. A identificação dos restos mortais dos 144 passageiros e seis tripulantes será feita por testes de DNA.

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O que começou como o pior acidente aéreo em território francês desde 1981, chocante como esses eventos costumam ser, transformou-se, na quinta-feira 26, numa investigação de homicídio. Segundo o promotor de Marselha que analisou a gravação da caixa-preta de voz, principal evidência recuperada até a sexta-feira 27, qualquer outra explicação para a tragédia que não a vontade do copiloto de tirar a própria vida e a dos ocupantes do Airbus agora está em segundo plano. Os mortos compreendem pessoas de ao menos 15 nacionalidades. Entre as vítimas, 16 alunos do Ensino Médio e duas professoras da escola Joseph-König, no pequeno município alemão de Haltern am See, que voltavam de um intercâmbio de uma semana na Espanha, na vila de Llinars del Valles. Um casal de marroquinos recém-casados, Asmae Ouahoud el Allaoui, de 23 anos, e Mohammed Tehrioui, de 24, viajava a Düsseldorf para começar uma nova vida. Três gerações de uma mesma família (filha, mãe e avó), todas da cidade espanhola de Sant Cugat del Valles, perto de Barcelona, morreram. O cantor lírico Oleg Bryjak, da Ópera de Düsseldorf, também perdeu a vida na queda do avião. Ele havia apresentado a peça “Siegfried”, de Richard Wagner, no teatro Liceu de Barcelona, ao lado da também cantora Maria Radner, outra vítima da tragédia, que viajava com o marido e o filho bebê. O tema central de “Siegfried” é o medo.

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A busca pelos motivos para as ações do copiloto começaram na própria tarde de quinta-feira, quando viaturas de polícia cercaram uma bela casa de dois pavimentos na pacata cidade de Montabaur, no oeste da Alemanha. Foi nessa área, entre as ruas tranquilas e os jardins bem cuidados do município de 12,5 mil habitantes, que Andreas morou a maior parte da vida, ao lado dos pais e do irmão mais novo. Enquanto a polícia alemã coletava evidências e tentava garantir a segurança da família Lubitz, outra equipe investigava o apartamento do aviador nos arredores de Düsseldorf. Ali, segundo um porta-voz, eles fizeram “uma descoberta significativa”, que incluiria documentos médicos indicando uma suposta doença mental, que teria sido mantida em segredo por Andreas. As evidências compreendem, de acordo com os procuradores alemães, um atestado médico para afastamento do trabalho “por causa de uma doença”. O atestado estava rasgado e trouxe um dado revelador: quando derrubou o Airbus, Andreas estava oficialmente de licença por motivos de saúde. Em nota, os investigadores ainda disseram que não foram encontrados bilhetes de suicídio ou evidências de “ligações políticas e religiosas” do copiloto, o que tornaria a hipótese de atentado terrorista pouco provável.

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Agora, o histórico de saúde, profissional, financeiro e afetivo de Andreas será minuciosamente investigado. Segundo a Lufthansa, controladora da empresa aérea de baixo custo Germanwings, o aviador era “100% apto para o serviço”. A corporação confirmou, no entanto, que ele interrompeu o treinamento de voo durante seis meses em 2009, sem esclarecer os motivos. À imprensa europeia, amigos de Andreas afirmaram que o copiloto sofrera de depressão e de distúrbios relacionados ao estresse. De acordo com o jornal alemão “Bild”, a interrupção no treinamento do copiloto, que acontecia em Phoenix (EUA), ocorreu justamente por causa de sérios episódios depressivos. A publicação afirma, ainda, que Andreas teria passado por tratamento com remédios controlados. Nenhuma dessas alegações foi confirmada oficialmente pela polícia alemã, pelos investigadores franceses ou pela Lufthansa.

Na posição de copiloto do fatídico voo da Germanwings, Andreas era certamente o aviador menos experiente. No assento principal do Airbus, o esquerdo, estava o comandante Patrick Sonderheimer, piloto com dez anos de companhia e pai de dois filhos. As 6 mil horas de voo acumuladas por Patrick faziam dele um profissional tarimbado, especialmente se comparado a Andreas, que contabilizava apenas 630 horas no ar e havia entrado para a Germanwings em setembro de 2013. Nada, entretanto, poderia preparar o comandante para o que aconteceu meia-hora depois da decolagem. Segundo a promotoria francesa que investiga o desastre, quando Patrick deixou o cockpit (para ir ao banheiro, esticar as pernas ou falar com alguém da tripulação), Andreas trancou a porta blindada e programou o avião para realizar uma descida rápida, porém controlada, em direção às montanhas (confira quadro).

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LUTO
A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, o presidente da França, François
Hollande, e o primeiro-ministro da Espanha, Mariano Rajoy,
participam de homenagem às vítimas

Segundo Peter Goelz, ex-diretor do Conselho Nacional de Segurança do Transporte dos Estados Unidos (NTSB), responsável pela investigação de todos os acidentes aéreos no país, não é comum que pilotos ou copilotos fiquem sozinhos na cabine durante o voo. “Mas isso às vezes acontece”, disse o especialista à ISTOÉ. A legislação americana pós-11 de Setembro determina que, se um dos aviadores precisa deixar o cockpit, algum comissário de bordo deve esperar lá dentro até que ele retorne. O mesmo não ocorre em linhas aéreas de outros países. “Se o piloto tranca a porta por dentro, não há como outra pessoa entrar sem autorização”, diz Goelz. “Essa política certamente será revista depois desse incidente.” De fato, nas horas imediatamente posteriores à tragédia, companhias como Air Canada, Norwegian Air Shuttle e EasyJet informaram que instituiriam imediatamente a “regra das duas pessoas no cockpit”. O mesmo ocorrerá em todas as empresas da Alemanha, segundo a associação local responsável pela segurança em voo. No Brasil, os pilotos da Avianca foram informados de que o procedimento será adotado pela companhia.

A tragédia do voo 9525 também levanta questões sobre a confiabilidade das avaliações psicológicas realizadas pelas companhias aéreas. Carsten Spohr, diretor-executivo da Lufthansa, disse na quinta-feira que Lubitz havia sido aprovado “com louvor” em todas as checagens de saúde promovidas pela companhia. “Não havia nenhuma limitação para ele”, afirmou. Questionado sobre a interrupção no treinamento do copiloto em 2009, Spohr afirmou que, se as razões para isso foram de natureza médica, as leis alemãs sobre privacidade impediriam a divulgação. Diante disso, autoridades europeias como a chanceler alemã, Angela Merkel, o presidente da França, François Hollande, e o primeiro-ministro da Espanha, Mariano Rajoy, já deram indicações de que vão pressionar por mais rigor nas avaliações. Ainda assim, segundo especialistas ouvidos por ISTOÉ, parar um piloto suicida seria uma tarefa muito difícil. A resposta poderia estar em sistemas de controle remoto de aviões, similares aos utilizados em drones militares, que seriam acionados em situações extremas. Testes com esse tipo tecnologia já estão em curso, mas a eventual aplicação prática, dependente de uma infinidade de aprovações de segurança, ainda está a pelo menos uma década de distância.

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Ao menos publicamente, Andreas era “um jovem normal, de bem com a vida, que não fazia nada que saísse do comum”, como descreveu Klaus Radke, 66 anos, presidente do clube de aeronáutica de Montabaur, onde o aviador começou a ter aulas de pilotagem, aos 14 anos. “Ele era muito competente”, disse o instrutor à agência France Presse. Foi esse súbito rompimento da normalidade na vida de Andreas que causou choque generalizado. Na pequena cidade natal, vizinhos sempre viam o jovem correndo pelas ruas, ao lado da namorada ou do irmão. Em 2007, mesmo ano em que deixou a residência fixa dos pais, foi 72º colocado em uma prova de 10 km com 780 participantes. Filho de um executivo bem-sucedido e de uma professora de piano, o copiloto não passou por dificuldades financeiras nem se envolveu em confusões durante a infância e a adolescência. Tudo certo, até a manhã de terça-feira, 24 de março de 2015, quando, as investigações apontam, Andreas se tornou um assassino em massa.

Fotos: Emmanuel Foudrot, Kai Pfaffenbach – REUTERS; Michael Probst/AP, Peter Macdiarmid/Getty Images; ANNE-CHRISTINE POUJOULAT/afp; Christophe Ena, Ina Fassbender – REUTERS, Bureau d’Enquetes et d’Analyses/AP