Dez anos depois de uma longa batalha judicial, o Supremo Tribunal Federal (STF) publicou neste mês uma decisão inédita, que reconheceu o direito de um casal homossexual de adotar crianças. O educador Toni Reis, seu marido, o tradutor David Harrad, e os três filhos, Alysson de 14 anos, Jéssica, de 9 anos, e Felipe, com 8 anos, foram finalmente considerados uma família. O posicionamento favorável da corte endossou o julgamento histórico de 2011, no qual o então presidente do STF, Carlos Ayres Britto, ressaltou que a Constituição Federal não distingue a família heteroafetiva da família homoafetiva. A decisão, considerada emblemática, abrirá precedentes para outros casais homossexuais que desejem adotar. “Se a Justiça começou a admitir é porque se trata se um comportamento já consolidado na sociedade”, diz a jurista Maria Berenice Dias, do Instituto Nacional de Direito da Família (Ibdfam). Na contramão do caminho que vem percorrendo o Judiciário, que está na vanguarda do Direito de Família, o Poder Legislativo criou recentemente uma comissão especial para discutir o projeto de lei conhecido como Estatuto da Família, que define a entidade familiar como “um núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher.” Mas, afinal, o que pensa a sociedade brasileira sobre a configuração familiar do século XXI?

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IDENTIDADE
Toni Reis (à esq.), os filhos Alysson e Jéssica, o marido David Harrad,
e o caçula Felipe: "Ganhei meu marido e meus filhos, agora me sinto um
cidadão pleno, que acredita nas instituições. Temos o poder
máximo do Judiciário como nosso guardião"

A reação dos brasileiros em relação aos diferentes tipos de família também pode ser medida após a exibição de uma cena amorosa, protagonizada pelas atrizes Fernanda Montenegro e Nathália Timberg, ambas com 85 anos, na novela “Babilônia”, da Rede Globo. A reações com o beijo gay ultrapassaram as redes sociais e fizeram a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional divulgar uma nota de repúdio. “A telenovela tem a clara intenção de afrontar os cristãos em suas convicções e princípios, querendo trazer para quase toda a sociedade brasileira o modismo denominado por eles de ‘outra forma de amar’”. A nota diz, ainda, que a cena ataca diretamente a ‘família natural’. “Trata-se de uma visão repleta de preconceito”, diz a psicóloga Célia Mazza de Souza. “Sempre que estamos próximos de mudanças, enfrentamos resistências e, nesse caso, a reação se potencializou por se tratar de duas idosas, o que gerou duplo preconceito.” Para Célia, a sociedade ocidental viveu durante muito tempo sob a influência do patriarcado, quando apenas o pai era o provedor e o chefe da família. “Os arranjos que se vêem hoje não são decorrentes de uma crise na instituição familiar, são um reflexo de mudanças na sociedade.”

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IBOPE
Nathália Timberg e Fernanda Montenegro no beijo
da discórdia: reação preconceituosa e conservadora

A história de Toni Reis e David Harrad é um exemplo dessas mudanças. Ela começou em 2005, quando o casal entrou com pedido de adoção junto à Vara da Infância e Juventude de Curitiba. O juiz se manifestou favorável à decisão, mas impôs restrições. As crianças adotadas deveriam ser meninas e terem mais de dez anos de idade. Tempos depois, a ministra Carmen Lúcia negou o recurso extraordinário do Ministério Público. “Delimitar o sexo e a idade da criança a ser adotada por um casal homoafetivo é transformar a sublime relação de filiação em ato de caridade provido de obrigações sociais e totalmente desprovido de amor e comprometimento”, afirmou a relatora do caso. “A decisão mostrou que o conceito de inclusão foi reconhecido pela Justiça, ainda que o Congresso tente engessar pessoas dentro de um modelo único”, afirma Maria Berenice, do Ibdfam. “O direito à paternidade mudou minha concepção sobre tudo”, diz Reis. “Essa decisão vai ser uma referência para outras instâncias, não podemos ter leis apenas para um tipo de família.”

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De acordo com o IBGE, existem no Brasil 3.701 casamentos entre cônjuges do mesmo sexo. Apesar do número expressivo, o projeto de lei de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR/PE) propõe que esse grupo não seja considerado família. “O Estatuto tem como objetivo garantir o que está na Constituição, os valores estão invertidos e a maioria da sociedade não está aceitando isso”, diz. “O movimento LGTB tenta embutir um novo formato de família como se fosse o padrão.” Embora exista uma parcela da sociedade mais conservadora, as diferentes configurações familiares estão cada vez mais corriqueiras. “Existem mães solteiras, uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, casamentos, famílias multiparentais, por isso a lei não pode limitar o reconhecimento que já existe na prática”, afirma Suzana Viegas, professora de Direito Civil da Universidade de Brasília. “A família não pressupõe necessariamente laços sanguíneos.” Os poderes refletem uma divergência que ainda hoje divide o País. O antropólogo da Universidade Federal da Bahia, Luiz Mott, considera que o Estatuto da Família pode representar um retrocesso. “É inaceitável que modelos antiquados como esse sejam levados adiante”, afirma. “Mesmo com a onda conservadora, a sociedade consegue reagir com manifestações públicas em momentos que a intolerância fica escancarada. O mundo caminha para a diversidade.” 


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