Livros de origem acadêmica normalmente são peças de circulação limitada ao meio universitário e quase sempre pouco atraentes ao leitor comum. “Nossos comerciais, por favor!” – a televisão brasileira e a Escola Superior de Guerra: o caso Flávio Cavalcanti (Beca, 128 págs., R$ 25), dissertação de mestrado da historiadora carioca Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira, 40 anos, para a Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), é uma exceção à regra. A autora, que concebeu um trabalho fluente e provocador, coloca o leitor diante de uma espécie de ovo da serpente encubado pela ditadura, com a participação dos melhores cérebros da caserna. Através de seu livro, Lúcia revela um projeto doutrinário que sustentou o regime militar amparado em ideais extremamente conservadores elaborados pela Escola Superior de Guerra (ESG) e que encontraram no apresentador Flávio Cavalcanti (1923-1986) seu mais exacerbado, ainda que involuntário, porta-voz.

O que provoca calafrios entre as conclusões de Lúcia é que A doutrina, como é apresentado o Manual Básico da Escola Superior de Guerra, tinha ampla aceitação das elites brasileiras. “Era um projeto pesado, excludente, que eliminava a pluralidade”, diz a autora. Propagava um estilo de vida calcado em valores cristãos ocidentais e parecia imbuído de estímulos missionários. Aconselhava, por exemplo, as mulheres a não trabalhar fora. “Ao saírem de casa, elas desordenariam a vida doméstica e iriam contra os valores familiares”, relembra Lúcia. Diante de tais preceitos, emergia a figura autoritária do apresentador Flávio Cavalcanti, que, com seus gestos largos catalisava – para surpresa geral – uma enorme parcela das classes mais privilegiadas do País, que realmente compartilhava de seus arroubos moralistas pontuados por frases lapidares do tipo: “Acho que na porta de uma maternidade todo mundo deve torcer para nascer homem ou mulher… nada diferente disso.”

Flávio Cavalcanti, portanto, não poderia ter surgido em melhor momento para o regime militar. A televisão se tornava o instrumento mais importante no projeto de unidade nacional criado pela ESG. Não à toa o veículo recebeu do governo intensos investimentos em tecnologia, tendo como resposta um enorme apoio popular às programações em geral. À época, uma pesquisa do Ibope continha a seguinte questão: “Em que meio confia mais quando recebe uma notícia?” A televisão despontou soberana, com 64,6% das preferências. O apresentador se aproveitava de tamanha credibilidade para alardear os feitos militares. Também fazia discursos como o da tese paranóica supondo que a canção Alegria, alegria, de Caetano Veloso, continha referências ao ácido lisérgico nos versos “sem lenço, sem documento”, as iniciais de LSD.

Em nenhum momento, a autora quis traçar uma biografia de Cavalcanti, por quem ela afirma não ter nutrido nenhuma simpatia. Não esconde, porém, que quando criança ficava magnetizada pela presença dele na televisão. A peça de resistência no trabalho de Lúcia, contudo, é embutir a reflexão aterradora de que a democracia não esteja totalmente garantida no Brasil. “O golpe militar não foi unilateral. A sociedade foi lá chamar os militares, e isso pode acontecer de novo”, analisou Lúcia em conversa com ISTOÉ. Não por acaso, ela mostra como pode ser perigoso o casamento de princípios conservadores, uma elite assustada e um veículo com o poder da televisão.