Numa tarde abafada de 1944, um conde maneta e cego de um olho se infiltrou num quartel-general da Prússia Oriental onde Adolf Hitler, em algumas horas, se reuniria com o Estado-Maior. Claus von Stauffenberg levava duas bombas, o suficiente para matar toda a cúpula nazista que ali se encontraria. Acredita-se que pela dificuldade motora de Stauffenberg, apenas um dos explosivos cumpriu a missão. Hitler chegou a ter o uniforme destruído pelos estilhaços – existe uma imagem quase cômica de um soldado exibindo o que sobrou das calças do ditador. Mas sobreviveu, debelando o núcleo forte de traidores que ocupavam parte da inteligência do III Reich. O ninho de rebeldes, composto quase todo por altas patentes da SS e aristocratas, queria com o assassinato propor um acordo com os Aliados – mais por entenderem que a Alemanha seria destruída em breve do que por indignação aos crimes nazistas em curso. Entre os escritórios envolvidos com a Operação Valquíria – como entrou para a história a tentativa frustrada de assassinar Hitler –, o Ministério de Relações Exteriores e o Departamento de Informação serviram de cenário para parte importante da articulação rebelde. Só se sabe disso hoje porque ali, em edifícios que mantinham a tapeçaria e móveis das antigas embaixadas, trabalhava uma jovem russa expatriada pela Revolução Russa, a princesa Marie Vassiltchikov, que manteve durante sua vida de funcionária pública da Alemanha nazista um diário detalhado que cobriu os anos de guerra e que só veio a publicar quase 40 anos depois, poucas semanas antes de sua morte. “Diários de Berlim 1940-1945”, reconhecido como o mais importante relato de uma testemunha ocular da ascensão e queda da capital alemã, sai pela primeira vez no Brasil pela editora Boitempo, com comentário de Antonio Candido destacando a “qualidade extraordinária” do livro, como documento e como revelação de personalidade. Marie – Missie para os próximos –, apesar de nobre de origem, tinha a vida comum de uma exilada. Os empregos no governo que garantiam o seu sustento eram conseguidos graças às muitas línguas que falava e aos bons contatos que fez durante a sua vida em território alemão, um cotidiano que ia da fuga de bombardeios a festas em que a aristocracia europeia ainda tentava manter a ostentação de outrora. Numa das passagens, ela descreve que faltava cerveja, mas sobrava champanhe e caviar.

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AUTORA
Marie Vassiltchikov terminou o livro algumas
semanas antes de morrer em 1978

“Muitas partes do diário foram propositadamente destruídas pela autora, conta o pesquisador e tradutor Flávio Aguiar, em entrevista à ISTOÉ, de Berlim. “Há duas hipóteses possíveis: preservação de pessoas da família ou de seu relacionamento, e seu envolvimento, com a conspiração. A autora insiste que foi apenas uma testemunha privilegiada. Mas fica claro que seu envolvimento foi maior”, disse Aguiar. Faltam partes de 1941, 1942 e o começo de 1943.

Um dos mais admirados e próximos amigos de quem se pode aferir um perfil heroico é Adam Von Trott zu Solz, o cérebro do atentado e seu chefe no ministério. “Não é possível afirmar com certeza que tenha havido um romance entre ela e Trott, embora a tentação seja grande”, considerou o pesquisador.

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POR UM TRIZ
Ao lado, o bunker polonês depois da explosão. Se estivesse do outro
lado da mesa, onde costumava deliberar, Adolf Hitler (foto) teria morrido
na Operação Valquíria. Apenas seu uniforme sofreu com os estilhaços

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O que se pode dizer com certeza é que o afeto e a admiração mútuos eram muito intensos. Isso fica muito claro nas observações que ela faz sobre a personalidade e o rosto do amigo, que deve ter sido um homem muito atraente, além de um intelectual brilhante e um patriota dedicado. Trott foi julgado e condedado à morte pela traição. Foi enforcado da prisão de Plötzensee, em 26 de agosto de 1944, com cordas de piano.

Mesmo com as perdas duras e com a convivência compulsória com os asseclas que Hitler enviava para fiscalizar suas repartições (como Franz Six, que vivia lhe pedindo reuniões particulares), Marie jamais abandonou seus diários. A decisão de publicar, porém, levou muitos anos. Marie Vassiltchikov terminou de editar o livro – quase todo feito em códigos taquigráficos criados por ela e depois datilografados em inglês – algumas semanas antes de morrer de leucemia, em Londres em 1978, cinco anos depois da morte do marido, Peter Graham Harnden, um militar americano.

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HERÓI
Adam von Trott zu Solz foi integrante da alta cúpula do Ministério das Relações
Exteriores, era o arquiteto da Operação Valquíria. Foi condenado à morte e
enforcado em 1944 pelo partido nazista com cordas de piano

Fotos: Divulgação 


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