Na última semana, a Inglaterra abriu pela primeira vez no mundo, de forma oficial, o caminho para o uso de métodos que permitem a criação de embriões com material genético fornecido por três pessoas: o pai, a mãe e um doador (um casal que doa um embrião ou uma mulher que oferta seu óvulo). Uma emenda à lei que regulamenta a reprodução humana assistida naquele país foi aprovada na Câmara dos Comuns do Parlamento e só precisa passar pela Câmara dos Lordes – o que se dá como certo – para que as técnicas tornem-se legais. Se isso ocorrer este ano, os primeiros bebês com três pais deverão nascer na Inglaterra em 2016.

abre.jpg

A justificativa para a aprovação da emenda foi deixar acessível métodos que evitam doenças associadas a defeitos genéticos em genes presentes nas mitocôndrias. As mitocôndrias são as usinas de energia das células. Elas estão dispostas no citoplasma e contêm 0,002% do DNA (todo o resto está no núcleo celular). Os genes das mitocôndrias são fornecidos pela mãe. Alterações em seu funcionamento levam a doenças graves que acometem em especial os tecidos que mais necessitam de energia, como os do cérebro e dos músculos. Não há cura para elas.

As duas técnicas disponíveis envolvem a manipulação do DNA. Uma atua sobre os materiais genéticos de um óvulo doado e do óvulo da mãe. Outra age sobre os genes de um embrião doado e os do embrião feito com o DNA dos pais. Nos dois casos, o objetivo é criar embriões que tenham mitocôndrias saudáveis (leia mais no quadro).

02.jpg

A decisão do Parlamento inglês causou polêmica. Boa parte dos médicos aplaudiu a ação. “A atitude está correta. Os procedimentos podem, no futuro, evitar a chance de transmissão de doenças associadas a mutações do DNA mitocondrial”, afirma Marcello Valle, médico especialista em reprodução humana assistida, do Rio de Janeiro.

Uma das ponderações, porém, diz respeito às consequências para a saúde das crianças a longo prazo. “Será que a junção de três DNAs diferentes não levaria a algum problema ao longo da vida?”, diz o médico Luiz Fernando Dale, da área de reprodução humana assistida. Os defensores do uso dos métodos argumentam que a parte do DNA que não seria do casal é pequena demais para ter maiores impactos na formação genética geral do indivíduo.

Algumas poucas pessoas já foram geradas a partir das técnicas, usadas por um período nos EUA até serem proibidas pela FDA, a agência americana que regula procedimentos de saúde. Uma delas é a jovem e saudável Alana Saarinen, nascida no ano 2000. No Brasil, elas não são permitidas. “A legislação considera proibida a engenharia genética em células germinativas e em embriões humanos”, explica o médico Valle.

01.jpg
ÊXITO
Alana, à esq., é uma das poucas pessoas no mundo que
têm genes de três pessoas. Rachel, em Londres,
lutou pela aprovação da emenda

Está aí o outro motivo da polêmica. A manipulação genética foi condenada pelas igrejas Católica e Anglicana, na Inglaterra, sob o argumento de que não seria ética. A crítica é a de que a disponibilidade dos métodos incentive a busca por bebês perfeitos. No Brasil, o biólogo José Roberto Goldim, professor de bioética da PUC do Rio Grande do Sul, também faz ressalvas. “Nem tudo o que é possível deve ser realizado. Ainda não estamos maduros para a liberação de técnicas como essas”, defende.

O especialista em reprodução humana assistida Matheus Roque considera que uma legislação consistente impediria o uso incorreto das técnicas. “Trata-se de fazer uma regulação adequada para que as finalidades dos métodos não sejam extrapoladas”, diz. A inglesa Rachel Kean, 26 anos, descobriu que há casos em sua família de defeitos genéticos no DNA mitocondrial, e foi uma das que lutaram pela aprovação da emenda. Ela acredita no bom senso na aplicação dos métodos. “E o importante é que, pela primeira vez, há esperança contra as doenças.”

Foto: Alastair Grant/AP