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MACABRO
No quadro do pintor Vasari que enfeita a parede no Vaticano,
líder religioso morto é jogado pela janela do prédio.
Na verdade, o corpo já tinha sido decapitado quando isso aconteceu

Em apenas um dia, cinco mil pessoas foram mortas em Paris. A tragédia começou depois de um líder religioso, conhecido como Coligny, ser alvejado por um atirador. Ele levou dois tiros quando voltava para casa após comparecer a uma repartição pública no dia 22 de agosto. As balas o atingiram num braço e em uma das mãos. Seus seguidores – minoritários na França, mas cada vez mais numerosos, influentes e vistos com suspeição pelos demais parisienses – atribuíram o atentado frustrado ao governo e organizaram manifestações clamando por justiça e jurando vingança. A administração francesa, representante da maioria religiosa do país, temeu uma rebelião e instigou a população “fiel” a reagir. O resultado foi um massacre sangrento jamais visto na cidade.

Coligny tinha saído do Palácio do Louvre à tarde, tomando a movimentada rua de Poliens no rumo de casa. De uma esquina, surgiu o atirador que disparou e fugiu em meio à multidão. O líder religioso recusou atendimento nos hospitais de Paris e foi levado ferido à sua residência na rua de Berthisy, para onde logo acorreram seus mais eminentes irmãos de fé. Durante a noite, formou-se uma multidão que exigia a prisão do atirador, identificado como um agente oficial notório.

Quando o dia raiou, os ânimos ainda estavam inflamados em torno da rua de Berthisy, e Paris havia sido contaminada pelo boato de que forças militares se colocavam em prontidão para reprimir os protestos da minoria religiosa. Perto de meia-noite, um grupo de policiais invadiu a casa de Coligny e o matou na cama. Centenas de parisienses seguidores da religião majoritária ocuparam a rua, pondo os manifestantes a correr. O corpo de Coligny, já sem cabeça, foi jogado pela janela, desabando no meio da turba. Queimado e arrastado pelas vielas do bairro, teve pedaços exibidos em diversos pontos da capital.

Seguiu-se mais horror. Bandos enfurecidos apoderaram-se das ruas capturando e matando qualquer um que fosse identificado com a minoria religiosa. Na madrugada, casas foram invadidas e seus moradores, degolados. Corpos esquartejados eram jogados como lixo no rio Sena. As águas se avermelharam de sangue. Havia soldados misturados às hordas, mas a maioria das atrocidades, segundo testemunhas, veio pelas mãos de pessoas que normalmente se comportariam como cidadãos pacatos. Todos pareciam convencidos de participar de uma batalha decisiva entre Deus e o Diabo. Orléans, Lyon, Rouen, Toulouse, Bordeaux e outras cidades menores registraram cenas semelhantes, elevando para quase dez mil pessoas o número de mortos em todo o país.

Foi uma guerra de cristãos contra protestantes. A jornada de barbáries, que entrou para a história como a Noite de São Bartolomeu, teve seu ápice em 24 de agosto de 1572, dia de homenagens ao santo católico. A cabeça de Gaspard de Coligny, chefe dos huguenotes, como eram chamados os protestantes franceses, foi embalsamada e despachada a Roma para admiração do papa. Gregório XIII demonstrou satisfação, encomendando ao célebre pintor Giorgio Vasari um afresco realista e macabro para adornar a Sala Régia do Vaticano. O rei católico Carlos IX participou de procissões de ação de graças por Paris e mandou cunhar duas medalhas comemorativas à Noite de São Bartolomeu. Numa, era representado como Hércules em combate contra a Hidra. Na outra, Carlos IX resplandecia em seu trono cercado de cadáveres despidos. Os conflitos entre católicos e protestantes na França se arrastariam por quase 30 anos.

“Não há hostilidade que supere a hostilidade cristã”, escreveu o filósofo Michel de Montaigne (1533-1592). Este pensador cético, testemunha de tempos desesperançosos para qualquer idealismo humanitário, seria peça fundamental para desatar os nós do ódio religioso que dividia os franceses. “Para ele, a ideia de que a solução da crise política estivesse na oração e nos exercícios espirituais radicais não fazia sentido”, diz a escritora inglesa Sarah Bakewell, biógrafa do filósofo. Montaigne tornou-se companheiro de estrada dos politiques, designação pejorativa dada então aos pensadores que se distinguiam pela convicção de que as encrencas francesas não tinham nada a ver com as batalhas contra Satã ou a prepotência da correta interpretação da vontade divina. A raiva contra os politiques, preocupados exclusivamente com soluções políticas, “indiferentes à própria alma”, era a única coisa que aproximava católicos e huguenotes. Filósofo da vida que se leva, Montaigne lembrava aos contemporâneos, segundo Sarah Bakewell, a velha lição dos estoicos: “Evitar ser tragado por uma situação difícil, tentar imaginar o seu mundo de diferentes ângulos ou em diferentes escalas de significado”. Montaigne escrevia para os homens que, em épocas extremadas e sob intenso clima de paixões, colocam um pé atrás. Gente que, apesar do bruto cotidiano, precisa tocar a vida. Escrevia para a maior parte de nós, portanto. Sua receita para tempos conturbados era suspender juízos rápidos, buscar limites morais e afinar a desconfiança sobre a maldade praticada com ardor. Ao lado dos politiques, ele lutou para restabelecer a sensatez. Representou a França humanista em confronto com outra França que cultuava a escuridão. “Será de se espantar se daqui a 100 anos as pessoas lembrarem que em nossos dias houve guerras civis na França”, escreveu. Montaigne e seus parceiros acreditavam que o mundo poderia continuar avançando em ciclos de decadência e rejuvenescimento. Como se vê, não erraram.

Mais de quatro séculos passados e superados outros tantos embates entre a barbárie e a civilização, as lembranças da Noite de São Bartolomeu ainda propiciam uma perspectiva que ajuda a dimensionar impasses. De novo, um atentado de motivações religiosas, sobre um fundo de tensão política, desigualdade social e preconceitos, faz ressurgir o lado obscurantista da velha Europa. A história mostra que nada é mais eficaz para liquidar direitos e acabar com ressalvas jurídicas tradicionais do que a dupla alegação de que um crime é inusitadamente ameaçador e que seus responsáveis têm excepcional poder de resistência. Os cartazes de “Je suis Charlie” foram carregados às praças tanto pelas mãos de libertários quanto de liberticidas. Eram erguidos pela turma do “Hebdo” que declarava querer vomitar em personalidades presentes às manifestações. Mas também estavam com os fascistas de Jean Marie Le Pen, que ainda aproveitam o medo para fomentar a xenofobia e o ódio. Hoje, se alguém levasse às ruas de Paris um cartaz com “Je suis politique” poderia acabar tomando uns safanões. Se carregasse outro com “Je suis Montaigne”, se arriscaria a fazer companhia a napoleões de sanatório. O mundo mudou em 400 anos, mas a esperança segue a mesma: que, mais uma vez, a França dos amigos de Montaigne nos salve da França que se enrosca nas trevas.

Foto: Glowimages