Já passava das 8 horas da noite da segunda-feira 24 quando o procurador do condado de Saint Louis, nos Estados Unidos, Robert McCulloch, anunciou a conclusão do júri que decidiria o futuro do policial branco acusado de matar um jovem negro desarmado em Ferguson, em agosto. A notícia era aguardada ansiosamente pelos 21 mil habitantes do subúrbio no Missouri, que viveu semanas de intensos protestos após o assassinato de Michael Brown, de 18 anos. “Darren Wilson não será acusado”, disse McCulloch. O resultado não surpreendeu. Raramente queixas contra o uso excessivo da força são levadas adiante e, quando são, policiais costumam ser absolvidos. Enfurecida com o veredicto, a população de Ferguson foi novamente às ruas para repetir as cenas de violência de agosto – como antes, carros de polícia foram incendiados e lojas, saqueadas. Desta vez, porém, a revolta não ficou circunscrita ao gueto. Os protestos extrapolaram os limites de Ferguson e avançaram madrugada adentro em dezenas de cidades, como Washington e Boston, e chegaram a uma das regiões mais turísticas do país, a Times Square, em Nova York.

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GRITO POR JUSTIÇA
Em Nova York, os manifestantes levaram a voz dos subúrbios à Times Square

A revolta nacional levou milhares de americanos a segurar cartazes com a frase “não atire”. A imagem de Brown com as mãos levantadas em sinal de rendição, como se acreditava que havia acontecido na noite de 9 de agosto, se tornou icônica durante as manifestações, mas acabou desconstruída durante o julgamento de Wilson. Os 12 jurados (nove brancos e três negros) aceitaram a versão do policial de que ele agiu em legítima defesa. De acordo com Wilson, o garoto negro havia assaltado uma loja de conveniência e ele o abordou com base em sua descrição. O policial disse que Brown não parou e ainda o agrediu. Só então o agente atirou e o jovem se afastou para, em seguida, voltar em direção a Wilson. Ele atirou novamente e matou Brown. Foram seis tiros no total. Incorporados à rotina de Ferguson, os protestos foram impulsionados pelas redes sociais, que chamaram a atenção da grande mídia para o que estava acontecendo no gueto. Assim, receberam o apoio de celebridades como os astros do basquete LeBron James e Kobe Bryant, e o ator Jesse Williams, e mostraram que a morte de Brown não é um caso isolado. “Tenho a consciência limpa”, disse o policial em entrevista a uma tevê americana. “Sei que fiz meu trabalho corretamente.”

Em depoimento, Darren Wilson disse que Michael Brown tinha tanta raiva que “parecia um demônio”. A visão que os brancos têm dos negros como seres ameaçadores não é incomum nos Estados Unidos. Um estudo de 2008 da Universidade Stanford já mostrava que a discriminação contra negros estava ligada à desumanização deles. O trabalho feito por um grupo de psicólogos concluiu que muitos americanos não só associam negros a macacos como aprovam a violência policial contra eles. Talvez seja isso que esteja na origem de um sistema que prende e mata muito mais negros que brancos. “O que move esses jovens que vão para as ruas protestar é a percepção de que o sistema de justiça criminal é regido por duas regras: uma para os brancos e outra para os negros e mais recentemente os latinos”, afirma João Costa Vargas, antropólogo e professor de Estudos Africanos da Universidade do Texas. “É um sistema de apartheid, que, mais do que reformado, precisa ser reconstruído.”

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INDIGNAÇÃO
Em Ferguson, onde Brown foi morto, as passeatas terminaram em violência:
carros de polícia foram depredados e lojas, saqueadas

A sensação geral é de que a questão racial pouco avançou nos Estados Unidos nos últimos anos, apesar da chegada do primeiro negro à Casa Branca. O racismo ainda está implícito em estatísticas que mostram que, a cada 28 horas, um negro é morto por agentes do Estado, policiais ou vigilantes armados. Em 2013, manifestações parecidas com as da semana passada ocorreram depois que um vigia comunitário foi inocentado pelo homicídio de Trayvon Martin, de 17 anos, na Flórida. Martin era negro. Na ocasião, o presidente Barack Obama pediu a reavaliação de leis estaduais de autodefesa e ordenou que o Departamento de Justiça, chefiado por Eric Holder, também negro, desse continuidade às investigações. Nada mudou. Agora o mesmo Holder é responsável por duas investigações federais do caso Ferguson e, a pedido de Obama, por uma revisão das práticas policiais em todo o país. O resultado mais provável dessa medida é que os agentes sejam obrigados a utilizar câmeras em seus uniformes. Ainda é pouco.

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Fotos: Andrew Burton/Getty Images; David Goldman/ AP Photo; Eric Thayer