Popular entre intelectuais de esquerda e elogiado pelo “Pravda” – jornal oficial do Partido Comunista da União Soviética –, em plena Guerra Fria, Charles Chaplin se encontrava na década de 1940 sob estreita vigilância do FBI. Embora não houvesse provas concretas contra ele, a agência governamental americana manchou a imagem do comediante ao acusá-lo de engravidar uma ex-namorada que sofria de distúrbios mentais. As acusações acabaram sendo retiradas por falta de provas, mas fizeram com que ele se sentisse sob intensa pressão. Quase 20 anos após o fim do cinema mudo, ele sabia que parte da sua audiência já o havia abandonado. Em meio a tantas atribulações, Chaplin dedicava-se à família que começara a construir com uma mulher 36 anos mais nova, Oona O’Neill, filha do dramaturgo Eugene O’Neill.

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Nesse contexto surgiu “Luzes da Ribalta”, uma homenagem aos teatros de revista londrinos, populares no começo do século XX, nos quais Chaplin trabalhou antes de se lançar no cinema. O que poucos sabiam é que antes de se tornar o roteiro do que seria considerada sua última grande obra, Chaplin havia escrito uma novela usando a trama principal. Esquecida no porão da sua antiga residência na Suíça, ela foi descoberta em 2002 pelo escritor e biógrafo David Robinson, e está sendo publicada pela primeira vez – no Brasil, pela Companhia das Letras. Robinson assina o prefácio e diversos textos que explicam as transformações pelas quais a história passou até o seu roteiro final, e as diversas referências usadas no filme.

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REIS RIVAIS
"Luzes da Ribalta", último grande filme de Chaplin antes de ele deixar
os EUA, perseguido pelo macartismo, colocou em cena juntos pela
primeira e última vez Buster Keaton e Carlitos

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A ideia do enredo urgiu em 1936, logo depois da estreia de “Tempos Modernos”. Na primeira concepção para o cinema a trama foi desenvolvida para ser estrelada por Paulette Goddard, sua mulher na época e estrela de boa parte de seus filmes. A inspiração inicial veio do seu encontro com o bailarino Vaslav Nijinski em 1916, quando o Balé Russo se apresentou em Los Angeles. Nijinski acabou visitando os bastidores de filmagem de um filme de Chaplin, e este, retribuindo, compareceu a uma apresentação da companhia. O diretor ficou fascinado com a atuação da lenda russa. “Na hora em que ele apareceu, fiquei eletrizado. Vi poucos gênios neste mundo, e Nijinski foi um deles”, diria em sua autobiografia, “Minha Vida”, lançada em 1964.

A história recebeu tratamentos diferentes, até que o projeto foi abandonado com o fim do relacionamento de Chaplin com Paulette, quando ele passou a concentrar seus esforços em “O Grande Ditador”, lançado em 1940. O diretor só retomaria o projeto sete anos mais tarde, depois do fim da Segunda Guerra Mundial. As primeiras versões mostravam um dançarino de balé que se apaixona por uma jovem do meio artístico, com quem acabaria se casando. Em algumas versões, a jovem se mantinha fiel. Noutras traía o marido.

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HEROÍNA TRÁGICA
A atriz Claire Bloom no papel de Thereza, a jovem suicida que se
apaixona pelo bêbado Calvero em "Luzes da Ribalta"

No livro e no filme, o personagem principal é Calvero, um artista decadente que costumava se apresentar como palhaço no teatro. Alcoólatra, ele salva a dançarina Thereza (vivida no filme por Claire Bloom) de uma tentativa de suicídio. Estimulada por ele, Thereza passa a treinar e consegue se tornar estrela de um espetáculo. Os dois iniciam um romance, mas ela se torna famosa, enquanto ele amarga o fracasso, voltando a beber. No meio tempo, Thereza encontra Neville, um antigo afeto, e Calvero passa a incentivar um relacionamento entre os dois.

O livro lembra bastante o realismo de Charles Dickens, citado por Chaplin como uma grande influência. Há poucas diferenças em relação ao filme: o principal elemento a ficar de fora das telas é um longo flashback mostrando o passado de Terry (como a personagem de Thereza muitas vezes é chamada). Além de recuperar elementos da história do vaudeville londrino, “Luzes da Ribalta” se tornou um marco por reunir pela única vez os dois maiores comediantes do cinema mudo, os rivais Chaplin e Buster Keaton. A cena em que atuam juntos corresponde à última apresentação de Calvero no filme. Os dois se apresentam em um número musical, com Keaton ao piano e Chaplin cantando e tocando violino, cena desenhada já no último estágio das filmagens.

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OBSESSÃO
Chaplin viu Vaslav Nijinski em 1916 e passou as quatro décadas seguintes
desenvolvendo um personagem inspirado na lenda russa

Filmado após o auge do sucesso de Chaplin, “Luzes da Ribalta” é uma reflexão tanto sobre seu passado, ao mostrar a Londres de 1914, quanto seu presente, em que vivia uma relação com uma mulher quase quarenta anos mais nova, e suas inseguranças em relação ao futuro, no qual temia se tornar um artista esquecido. “Você disse que odiava o teatro”, diz a personagem de Thereza a certa altura.

“E também odeio ver sangue – mas ele corre em minhas veias”, responde Calvero. A frase poderia ser um resumo da relação de Chaplin com o meio artístico, que tanto lhe ofereceu e tanto lhe tomou. O diretor acabaria se exilando na Inglaterra logo após a estreia londrina do filme, em outubro de 1952, quando foi avisado que se pisasse novamente em solo americano seria detido pelo Departamento de Justiça. Chaplin preferiu ficar na Europa, e nunca mais faria outro filme nos EUA nem outro sucesso de bilheteria.

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Fotos: United Artists/The Kobal Collection; AFP