De acordo com os cristãos, Jesus Cristo tem duas naturezas, a divina – ele seria o verdadeiro Deus – e humana. Como um de nós, foi filho de Maria e José, seu pai adotivo, e parente de Tiago, José, Judas e Simão. Essas eram as pessoas mais próximas a ele. Havia, porém, uma outra figura muito presente no círculo íntimo desse homem: Maria Madalena. Ela o seguia e aos apóstolos, como discípula que colaborava nas tarefas domésticas. Chamada de Apóstola dos Apóstolos por ter anunciado a ressurreição de Cristo, Maria Madalena desempenhou um papel de liderança na Igreja primitiva. A porção divina de Jesus é sepultada no livro “O Evangelho Perdido – decodificando o Texto Sagrado, que narra sua vida de casado e pai de dois filhos. Lançado na quarta-feira 12, na Inglaterra, a obra é baseada em uma interpretação feita pelo cineasta especialista em investigações arqueológicas Simcha Jacobovici e por Barrie Wilson, professor de estudos da religião da Universidade de York, no Canadá, de um manuscrito datado do século VI que foi traduzido de um documento, provavelmente escrito no primeiro século. Nessa obra, descrita pela editora que a publica como uma “história de detetive histórica”, a dupla de escritores defende que Jesus ficou noivo, se casou, teve relações sexuais e dois filhos, Efraim e Manasses, com Maria Madalena. E vai mais longe. Mais do que íntima, a seguidora de Cristo é praticamente alçada ao púlpito cristão. “Maria Madalena não era apenas a senhora Jesus. Na verdade, ela era uma deusa. Ele é o filho de Deus e ela é filha Dele também”, diz Jacobovici, para quem “O Evangelho Perdido” é o primeiro livro a fazer uso de uma fonte escrita real a mostrar que Jesus e Maria Madalena foram casados e tiveram filhos.

abre.jpg
FOCO
Jesus (acima pintado por Rembrandt): vários textos voltam ao tema
do celibato, mas muitos não têm sequer o respaldo da comunidade científica

Há tempos, obras que apontam Jesus e Maria Madalena como um casal espocam pelo mundo. No Evangelho de Filipe, do século III – um texto apócrifo, que não é legitimado pela Igreja Católica –, relata um beijo do Nazareno na apóstola. Em 1953, o livro a “A Última Tentação de Cristo” fala do casamento entre eles. Em 2012, uma respeitada historiadora de Harvard revelou o Evangelho da Esposa de Jesus, também apócrifo, um fragmento de papiro do século IV escrito em copta – um idioma egípcio, que falava da “esposa de Jesus”. Nenhum deles, porém, fez tanto sucesso quanto “O Código da Vinci”, de Dan Brown, de 2003 (leia quadro). Adaptado para o cinema, o best seller que vendeu 80 milhões de cópias no mundo também aponta para o casamento de Cristo.

01.jpg
FICÇÃO?
Os autores Simcha Jacobovici e Barrie Wilson: a própria editora
intitula a obra como "história de detetive histórica"

O Evangelho Perdido é a bola da vez e tem sido criticado não só pela Igreja Católica, mas por arqueólogos e especialistas em exegese bíblica. O manuscrito que se serviu de base para o livro não menciona os nomes de Jesus e Maria Madalena, mas a história do casal José e Asseneth. Sobre esse fato, Jacobovici argumenta que por causa de traduções da obra para o grego e latim, no século 12, “sutilezas” foram perdidas e, agora, ao analisar o original em siríaco conseguiu decodificar a “mensagem escondida”: José estaria para Jesus como Asseneth para Maria Madalena. “Afirmar que José e Asseneth são representações veladas do casal Jesus e Maria Madalena requer muita imaginação que, certamente, não falta ao cineasta Jacobovici”, diz o arqueólogo Jorge Fabbro, da pós-graduação em arqueologia do Oriente Médio Antigo da Universidade de Santo Amaro (Unisa).

IEpag56a58_Jesus-2.jpg

Não é de hoje que Jacobovici é criticado por pesquisadores de história antiga pelo tom sensacionalista com que trabalha. Em 2007, ele revelou ter descoberto o túmulo onde Jesus Cristo teria sido sepultado. Até hoje, porém, não respondeu a questões da comunidade acadêmica que comprovem o achado. Em O Evangelho Perdido, ainda que haja alguma evidência de que o conto seja uma metáfora para falar de Jesus, sua esposa e filhos, o máximo que isso prova, na visão do arqueólogo Fabbro, é que, no século VI, havia uma pessoa que acreditava que Jesus havia se casado e tido filhos, mas não que isso tenha de fato ocorrido. Especialista em sagrada escritura, o cônego Celso Pedro da Silva também aponta para uma confusão entre evidência de crença com evidência de fato. “Descobertas de papiros ou pergaminhos, ou outro material, datáveis dos primeiros séculos, não significam que o conteúdo deles seja verdade”, diz ele, que é pároco da igreja Santa Rita de Cássia, no Pari, em São Paulo. “Jesus foi celibatário a vida inteira e não se casou com ninguém. Maria Madalena amava a Jesus, mas não no sentido de casar e ter filhos com ele.” Para André Chevitarese, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a única importância do Evangelho Perdido é dar voz às mulheres. “Escritos como esse vão contra o fato de só o homem ser a referência e tentam colocá-las no púlpito da Igreja.”

IEpag56a58_Jesus-3.jpg

Fotos: Reprodução, AFP PHOTO/JUSTIN TALLIS; Divulgação