Grande admirador de vinhos, o juiz João Carlos de Souza Correa, 52 anos, gostava de conversar com sommeliers e amigos até a madrugada nos badalados restaurantes de Búzios, na região dos Lagos do Rio de Janeiro, quando era o titular da 1ª Vara da Comarca local, entre 2004 e 2012. Pode ser que Correa, hoje no 18º Juizado Especial Criminal do Rio de Janeiro, tenha brindado com colegas a vitória na Justiça contra a agente de trânsito Luciana Silva Tamburini, 35 anos. Ela foi condenada em segunda instância pelo desembargador José Carlos Paes, da 14ª Câmara Cívil do Tribunal de Justiça (TJ) do Rio, a pagar R$ 5 mil ao magistrado. O motivo?

abre.jpg
INJUSTIÇA
Luciana Tamburini: penalizada por cumprir a lei

Luciana teria “zombado do cargo” dele numa blitz da Lei Seca em 2011, ao lembrar ao magistrado, que dirigia sem habilitação entre outras ilegalidades, que “juiz não é Deus”. Ela vai recorrer da sentença e a Corregedoria Nacional de Justiça – órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – também decidiu reavaliar o caso. Porém, independentemente do desfecho, esse episódio mostra que o velho “sabe com quem está falando?” resiste firme e forte no Brasil. E o histórico do juiz Correa mostra por que essa cultura precisa ser extirpada do País.

A história que envolve Luciana aconteceu numa blitz no Rio. A Land Rover nova de Correa estava sem placa e sem documentos e ele não carregava a carteira de habilitação. Ao ouvir a ordem de Luciana para rebocar o veículo, ele segurou a chave e lhe deu voz de prisão, segundo ela. “Eu pedi uma explicação plausível para isso e, na sequência, afirmei que juiz não é Deus, mas não disse isso diretamente a ele”, conta a agente, que se negou a ir algemada até a delegacia. O juiz processou Luciana por desacato, e ela o processou por danos morais. Correa ganhou na Justiça, mas perdeu em imagem, já que sua atitude foi desaprovada a ponto de internautas de vários cidades do Brasil se manifestarem contra ele e doarem dinheiro para uma vaquinha (leia abaixo) criada para pagar a sentença imposta à Luciana, que ganha R$ 3.900. Não foi o primeiro ato de contrariedade de Correa em relação à Lei Seca. Parado em outra blitz no ano passado, em Copacabana, ele recusou-se a fazer o teste do bafômetro, mas acabou, mesmo assim, multado por estar sob influência de álcool.

01.jpg

A jornalista Ana Elizabeth Prada, 47 anos, também conheceu a ira de Correa, que conseguiu que ela ficasse 12 horas presa na Delegacia de Búzios. Ela era uma das donas do jornal “Primeira Hora” na cidade litorânea e brigou por motivos financeiros com seu sócio Rui Borba, ex-secretário de Planejamento do município. A questão foi parar na Justiça e coube a Correa o julgamento: ele acolheu a liminar de Borba e afastou-a do jornal. Por não concordar com o trâmite do processo, Elizabeth fez um registro sobre a conduta de Correa na Corregedoria do Tribunal de Justiça do Rio e levou um processo por difamação. Com megafone em punho, a jornalista protestou contra o juiz na frente do TJ e registrou queixa no CNJ. Recebeu ordem de prisão de Correa quando distribuía uma carta aberta em Búzios. “Minha vida virou um inferno”, desabafou ela à ISTOÉ. Apesar de tudo, desta vez ele perdeu. Em 2011, Elizabeth foi absolvida e o ex-sócio dela acabou sendo preso, acusado de lavagem de dinheiro enquanto era gestor público.

A passagem de Correa, que foi casado com a socialite Alice Tamborindeguy, por Búzios é repleta de atitudes questionáveis, tanto que foi feito um abaixo-assinado na cidade, em 2011, pedindo a saída dele da Comarca. Há situações graves. O atual juiz titular, Marcelo Villas, julga um caso que o levou novamente ao CNJ. Correa estabeleceu limites considerados escandalosamente grandes — mais de 5 milhões de m2 — para um terreno do advogado Araken Rosa, no bairro nobre de Tucuns. Pela decisão de Correa, os moradores, que estão lá há anos, têm que pagar uma indenização a Rosa. Em nota, a Corregedoria diz que o órgão também apura a conduta pessoal, além da profissional, “em relação a decisões polêmicas tomadas por ele em processos sobre disputas fundiárias em Búzios”. Há ainda situações esdrúxulas, como a vivida pelo belga Phillippe Alian, dono do restaurante Dom João. Segundo ele, certa vez, um assessor de Correa o procurou dizendo que o juiz pedia que dois ventiladores do estabelecimento comercial fossem doados para o Fórum de Búzios. Alian se negou a dar os ventiladores, mas ficou preocupado, pois o estilo do juiz amedronta. “Temi receber pressões”, diz.

CARTEIRADA-04-IE.jpg
RECLAMAÇÃO
A jornalista Ana Elizabeth Prada, que registrou queixa no CNJ
contra Correa, e Phillippe Alian, dono de um restaurante
em Búzios, de quem o juiz queria dois ventiladores

CARTEIRADA-05-IE.jpg

Em Rio Bonito, na região metropolitana do Rio, a fama de Correa também causa espanto. Em 2009, ele foi parado pelo policial rodoviário federal Ânderson Caldeira, por estar usando um giroflex – luz que fica em cima do capô de viaturas policiais e cujo uso é restrito a veículos oficiais. Correa teria discutido com o policial e os dois foram parar na delegacia da cidade. Correa fez uma queixa contra ele na Corregedoria da Polícia Federal, que abriu uma investigação. Por falta de provas, o processo foi arquivado. No Detran, constam sete multas de trânsito contra Correa, sendo que seis delas estão com o pagamento vencido. O sociólogo Marcelo Burgos, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio, diz que, quando episódios assim vêm a público, valorizam a igualdade e mostram que ninguém está acima da lei. “Uma sociedade verdadeiramente democrática tem horror ao privilégio”, diz ele. Na internet, a reação corrobora essa tese. Foi criada uma página intitulada “Fora juiz João Carlos” , na rede social Facebook, com quase 5 mil curtidas e muitas manifestações de repúdio. Procurado pela reportagem da ISTOÉ, o juiz não quis dar entrevista.

R$ 22 mil É quanto os internautas, através de uma vaquinha online,
se comprometeram a repassar para Luciana Silva Tamburini pagar a
indenização e os custos das despesas jurídicas do processo movido
pelo juiz João Carlos de Souza Correa contra ela

Fotos: Marcelo Theobald, Marcio Alves – Ag. O Globo; Reprodução; Rogerio Daflon/Ag. Istoé