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Enseada do Bananal, Ilha Grande (RJ): 31 mortos num paraíso de perigos ignorados

Em menos de um mês as chuvas mataram 138 brasileiros, causaram prejuízos estimados em mais de R$ 1 bilhão e destruíram o mito de que o Brasil é um país imune a grandes desastres naturais

O mito de que o Brasil é um país imune aos desastres naturais foi abaixo com as chuvas que colheram a vida de 138 brasileiros e causaram prejuízos de mais de R$ 1 bilhão desde o início de dezembro. Abaixo foram também as justificativas confortáveis e conformistas de que tragédias como as de Angra dos Reis (RJ), Cunha (SP) e de tantas outras cidades brasileiras ao longo das últimas décadas são fruto único e exclusivo de simples fatalidades causadas pelas incontroláveis forças da natureza. Não são. As mudanças climáticas que mobilizam o mundo deixaram de ser uma previsão e há fartura de tecnologia para se saber que casas encravadas na encosta de uma região com índices pluviométricos historicamente elevados têm uma probabilidade razoável de simplesmente ser carregadas com chuvas intensas. O clima mudou, e a tendência é de que histórias trágicas como as relatadas nessa primeira semana de 2010 se repitam com cada vez mais frequência, caso o poder público continue atribuindo aos céus a culpa pelos seus mortos.

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DOR
Mais de 20 pessoas perderam a vida na pousada Sankay e casas vizinhas na virada do ano, na Ilha Grande

As 74 mortes de Angra, e da Ilha Grande, são, talvez, o exemplo mais explícito de que os governantes e os brasileiros em geral precisam de uma vez por todas entender que a natureza é outra e não há como desafiar sua força. Velhas crenças de que áreas de mata nativa, preservadas, ainda que em encostas, são áreas seguras porque o homem não fez uma intervenção ali precisam ser esquecidas. Os mortos da Pousada Sankay, localizada em uma área preservada na Ilha Grande, são prova disso. Cidades sem histórico de enchentes, como São Luiz do Paraitinga (SP), precisam, a partir de agora, estudar melhor sua geografia, sua geologia e sua hidrologia para ter uma noção exata de que perigos correm. E as leis de ocupação do solo, que nunca foram respeitadas como deveriam, precisarão ser revistas – e se tornar mais rigorosas – para que a cada ano o País não precise parar para contar suas vítimas do clima.

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SURPRESA
Sem histórico de grandes enchentes, em poucas horas São Luiz do Paraitinga (SP) foi destruída pelas águas

As chuvas que castigaram o Brasil neste verão, assim como aquelas que devastaram o Vale do Itajaí (SC) em novembro de 2008, já mostram características distintas das de anos anteriores. Agora, elas estão mais concentradas e em um volume muito maior. Em Blumenau, em 2008, choveu 800 milímetros em apenas um dia. Isso significa que em cada metro quadrado de solo foram despejados 800 litros de água. Agora, em Angra dos Reis, em três dias, foram mais de 430 milímetros de chuvas. E em Cunha (SP), onde uma família inteira foi praticamente devastada – apenas uma pessoa sobreviveu (leia à pág. 47) –, foram 183 milímetros em um só dia. Em todos esses casos há algo em comum: o volume de água que desceu dos céus é incompatível com as médias históricas. É o que o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas, o IPCC, chama de eventos extremos. E, como tem alertado o órgão internacional, eles serão cada vez mais frequentes e intensos. “As regras de ocupação do solo terão que ser mais rigorosas. Os tempos mudaram, é preciso nos adaptarmos às novas condições climáticas”, afirma o ambientalista e jornalista Washington Novaes, ex-secretário do Meio Ambiente do Distrito Federal.

Este é um consenso entre especialistas da área. A legislação que rege a ocupação do solo, seja ele em área urbana ou rural, precisa ser aperfeiçoada de forma urgente. “As regras que estão ai já foram superadas, não dão mais conta do recado”, afirma a arquiteta e urbanista da Universidade de São Paulo (USP) Regina Meyer. De acordo com ela, conceitos como o grau de inclinação de uma encosta apta para ser habitada, por exemplo, precisam ser mudados. “O risco é um objeto social. Quando passa, as pessoas se esquecem. Deveríamos tratar esse assunto como é tratado o Carnaval, nos preparar para ele o ano todo”, afirma o doutor em geociências e meio ambiente Fernando Rocha Rodrigues.

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Em fuga Moradores da Ilha Grande abandonam suas casas
temendo novos deslizamentos

Além das mudanças na legislação, a maneira como casas, estradas e pontes são construídas também precisa mudar. “Antes nós não tínhamos eventos dessa intensidade com tanta frequência, os projetos antigos não consideraram este cenário”, diz o engenheiro Francisco Yutaka Kurimori, do Crea-SP. As mudanças são urgentes, como se viu na última semana. É quase inacreditável ver pessoas levando 16 horas para viajar 200 quilômetros entre Ubatuba (SP) e a capital paulista por conta das chuvas. As cidades também precisarão rever seus sistemas de emergência. Em Angra, agora, são instaladas sirenes ligadas a pluviômetros para avisar a população que há risco iminente. Em São Paulo, onde as chuvas simplesmente param a cidade, já existe um sistema de monitoramento de emergência. Enfim, assim como o Japão com os terremotos e os Estados Unidos com os furacões, o Brasil vai precisar preparar-se, em todas as esferas, para os problemas que serão causados pelas chuvas cada vez mais intensas.

Na prática, isso significa que as áreas consideradas de risco hoje tendem a aumentar, englobando um número ainda maior de pessoas com potencial de serem vítimas de novas tragédias climáticas. A Organização Não Governamental Amigos da Terra estima que hoje, no Brasil, 40 milhões de pessoas vivam em áreas que podem ser consideradas de risco. “O risco não está apenas nas encostas. São rios, várzeas e outros tipos de áreas onde não deveria haver nenhuma residência. E a tendência é de que isso só aumente. Se nada for feito, tragédias como a de Angra vão se repetir”, afirma o diretor da Amigos da Terra, Roberto Smeraldi. ISTOÉ procurou os ministérios das Cidades e da Integração Nacional, mas o governo não consegue nem ao menos saber se a estimativa da ONG é factível ou não. “Não temos ideia da dimensão do problema”, afirma um técnico.

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PARADO
No RS ponte cai e interrompe trânsito (acima), em São Paulo águas param o metrô
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Essa nova configuração do que são áreas de risco está atingindo também uma camada da população pouco acostumada a ser vítima dos desastres naturais. Historicamente, enchentes, deslizamentos de terra e outros problemas causados pelas chuvas tinham como vítimas quase exclusivas as camadas menos favorecidas da população. “Na intuição das pessoas, o risco que elas correm ali é melhor que as outras situações disponíveis, ou seja, é uma minimização do prejuízo”, diz Maria Lucia Refinetti Martins, também arquiteta e urbanista da USP.

O que ocorre agora é que a classe média brasileira, e mesmo as camadas mais abastadas da população, também está se tornando vítima do clima. O caso da Pousada Sankay é um exemplo disso. A pousada era uma das mais caras da Ilha Grande e tinha como hóspedes pessoas que podiam pagar até R$ 400 por uma noite à beira-mar. Já em São Luiz do Paraitinga não havia nenhum indício de que o centro histórico dessa cidade famosa por seu Carnaval estivesse em uma área de risco. Mas mesmo assim a enxurrada simplesmente destruiu todo o comércio e o seu patrimônio histórico, abalando de forma consistente a principal indústria do município: o turismo. Em Belo Horizonte, a garagem de um edifício de classe média foi invadida pela lama após uma chuva torrencial e os moradores tiveram de deixá-la na primeira manhã de 2010. Em toda a região em torno da rodovia Rio-Santos, principal rota de lazer no verão para a classe média das duas maiores metrópoles brasileiras, há áreas de risco por todos os lados. E na ilha do cirurgião plástico Ivo Pintanguy, em Angra, ocorreram dois grandes deslizamentos.

 

A cidade histórica que desapareceu sob as águas

São Luiz do Paraitinga não existe mais. Os moradores da pequena cidade histórica no interior de São Paulo não se cansam de repetir esta frase desde a inundação que castigou a região, a partir da madrugada do dia 1o de janeiro. E, de certa forma, eles não estão errados. Apesar de o poder público garantir que abrirá os cofres para ela ser reerguida – 80% do centro histórico praticamente desapareceu –, especialistas explicam que grande parte do valor do patrimônio foi embora com a enxurrada que jogou a localidade num pesadelo.
Da população de pouco mais de 12 mil habitantes, cinco mil ficaram desabrigados. O centro, tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), ruiu. Duas escolas municipais, o prédio da prefeitura, cartórios e correios, além de um dos grandes símbolos do município, a Igreja da Matriz, foram reduzidos a uma ou outra parede mais resistente
e a uma enorme pilha de entulho. “Ouvíamos dos moradores mais antigos que na pior enchente de São Luiz a água chegou ao terceiro degrau da Igreja da Matriz”, conta o jornalista Luiz Egypto. “Dessa vez a água cobriu o prédio inteiro.” E ele veio abaixo.

Famosa pelo patrimônio histórico e arquitetônico, São Luiz do Paraitinga ganhou ainda mais importância no cenário cultural por promover, a partir dos anos 1980, eventos musicais como a Semana da Canção e o Festival de Marchinhas. Seu Carnaval também atraía milhares de turistas. O povo se aglomerava para brincar em torno de construções coloniais erguidas com técnicas antigas, como a taipa de pilão, mantidas com zelo pelo poder público. “Neste ano não teremos Carnaval”, sentenciou a prefeita Ana Lúcia Bilard Sicherle (PSDB-SP). Segundo o secretário de Cultura, Benedito Filadelfo de Campos Netto, estuda-se reproduzir o evento em cidades vizinhas. “Queremos levantar fundos para reconstruir a cidade”, afirma Netto.

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PERDA IRREPARÁVEL
Mais de 80% do centro histórico de São Luiz do Paraitinga simplesmente deixou de existir após a chuva que destruiu a cidade paulista
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Mas reconstruir uma cidade histórica não depende apenas de financiamento. Já no dia 5, técnicos do Condephaat, órgão estadual, e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que é federal, visitaram São Luiz para avaliar os danos causados pela enxurrada. “Não temos método para uma reconstrução dessa escala”, avaliou Luiz Fernando Almeida, presidente do Iphan. “Ele precisa ser criado.” Boa parte dos documentos que registram as medidas e a aparência dos prédios tombados foi destruída com o alagamento da prefeitura. Cópias terão de ser resgatadas nos arquivos dos dois órgãos de preservação. “Avaliar o estrago é prioridade e isso leva tempo”, disse um porta-voz do órgão estadual. O governador José Serra, que visitou a cidade, pensa de outra forma. “O pessoal do patrimônio gosta muito de discutir, mas nós vamos ter que ter uma ação mais rápida. Se for ficar discutindo academicamente, vamos levar anos”, disse. Para ele, o ideal seria replicar o que foi destruído e manter as características da cidade histórica. Enquanto o poder público se apressa para apagar as marcas da tragédia, o trabalho dos moradores é lento e doloroso. A advogada Andreia Globo, por exemplo, 28 anos trabalhava na prefeitura, morava no centro histórico e só conseguiu tirar os pais e a irmã de casa. “Nem as fotos e os documentos eu consegui salvar, só a vida”, diz ela.

Além das mortes, do rastro de destruição e das vidas esfaceladas de quem perdeu tudo e todos, as tragédias de verão também estão criando um novo problema para as autoridades brasileiras: os refugiados climáticos. O tema foi discutido amplamente na frustrada reunião da ONU em Copenhague, em dezembro. Muito se falou das populações de ilhas do Pacífico que terão que ser removidas, dos milhares de pessoas que terão que abandonar suas terras por conta das cheias e das secas. Mas poucos se atentaram para o fato de que esse refugiados possam ser urbanos. A destruição causada pelas chuvas – e o risco de que o que sobrou tenha o mesmo destino no futuro – está fazendo com que milhares de brasileiros abandonem suas casas, seus bairros ou mesmo as cidades onde sempre viveram.
Em Angra dos Reis, por exemplo, o governo já afirmou que cerca de três mil famílias terão que ser removidas de áreas de risco. Em São Luiz do Paraitinga, cerca de cinco mil famílias ficaram desalojadas, e muitas delas não têm mais para onde ir. Esses são os exemplos recentes. Mas casos semelhantes vêm se espalhando pelo País com uma rapidez impressionante.

E é com rapidez também que o poder público precisa encontrar soluções para esses casos que se avolumam. Indubitavelmente caberá ao Estado encontrar uma saída para os milhares de refugiados climáticos que surgem a cada ano. “As pessoas que moram nessas áreas de risco precisam ser contabilizadas como déficit habitacional”, diz Regina Meyer, da USP.

UMA SOMA DE FATORES

Graças ao calor acentuado, que evapora mais água e gera mais precipitação, o verão é naturalmente chuvoso.
Fatores extras, porém, tornaram traumática a virada do ano no Sul e Sudeste brasileiro

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Apesar de não ter registrado mortes como em outras regiões do País neste início de verão, o Jardim Romano, na periferia paulistana, é um exemplo emblemático dessa situação. O local fica, literalmente, às margens do rio Tietê, em uma área de várzea. Na prática isso significa que, quando o rio enche, o caminho natural das águas é a região onde estão as casas. Boa parte do Jardim Romano – e seu vizinho, o Jardim Pantanal – foi simplesmente invadida.

Atenilto Bispo Santos, um baiano de Itabuna que vive em São Paulo como pedreiro há 20 anos, seguiu esse roteiro. Construiu sua casa sobre uma lagoa sazonal, que enche na época de chuvas. Junto com um amigo, conseguiu cerca de 40 caminhões de terra para ampliar o nível do terreno e evitar que alagasse no verão. “Cheguei e coloquei a terra, depois comecei a construir”, conta ele. No início de janeiro as chuvas fortes fizeram o nível do Tietê subir e a área de várzea, é óbvio, foi alagada.

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REFUGIADOS
As chuvas farão com que ao menos três mil famílias de Angra dos Reis abandonem suas casas
para não correrem o risco de ter o mesmo destino que seus vizinhos mortos
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Sem que nada de anormal ocorresse e com vista nos dividendos políticos, o poder público não só não coibiu a invasão protagonizada por Atenilto e outras centenas de famílias como municiou a região com equipamentos públicos. Levou água e luz para as pequenas casas, pavimentou algumas das ruas, construiu um Centro de Educação Unificada (CEU). Agora a prefeitura inicia um plano de remoção das quase duas mil famílias que se instalaram por lá. A 100 delas ofereceu um apartamento popular na cidade de Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, e aos restantes está oferecendo uma bolsa aluguel, no valor de R$ 300, por seis meses, com a promessa de realocá-los para conjuntos habitacionais. Atenilto aceitou o apartamento. Mas boa parte daqueles que só conseguiram a bolsa aluguel se recusam a deixar o bairro. Eles temem que o compromisso não seja honrado.

Esse nó, causado por uma série de fatores pelos quais os próprios moradores e também o poder público são responsáveis, não é fácil de desatar. Retirar uma pessoa de sua casa, onde ela está inserida no tecido social – trabalho, amigos, família –, não é uma tarefa simples. Além disso, faltam recursos, falta planejamento e falta prevenção para que os mesmos problemas não ocorram novamente. Mas isso precisa mudar. As mortes, os milhares de refugiados das chuvas e os prejuízos deste verão precisam ser entendidos como apenas o começo de uma nova era, em que o clima precisa, mais do que nunca, ser respeitado. Nunca a frase do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, proferida no distante século XVIII, esteve tão atual: “A natureza nunca nos engana, nós é que sempre nos enganamos com ela.”

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Clique aqui para ver o depoimento de sobreviventes e familiares das vítimas