O poço sem fundo da política nacional, com sua mistura de tráfico de influência, cobrança de propina e caixinha de campanha, ganhou em Goiás um escândalo que, se não brilha pela originalidade, impressiona pelo descaramento. Há dois anos, uma construtora de médio porte, a Triunfo S.A., com sede em São Paulo e filiais em Cuiabá, Curitiba e Brasília, tentava receber do governo de Goiás uma dívida que, misteriosamente, deixara de ser honrada. O contrato, assinado entre o governo goiano e a Construtora Queiroz Galvão, previa o asfaltamento e terraplanagem da rodovia estadual GO-531. A megaconstrutora carioca subempreitou o serviço para a Triunfo. A obra ficou pronta, mas a última parcela devida, no valor de R$ 609 mil, nunca foi paga. Como tudo no Brasil começa ou termina em comissão, a Triunfo buscou socorro em um escritório de lobby para apressar a liberação da verba. Em troca, decidiu pagar uma comissão padrão de 25%. O dinheiro acabou saindo em dezembro, mas com outro tipo de empurrãozinho: um funcionário do Detran, Adailton do Amaral, candidato tucano derrotado à Prefeitura de São Miguel do Araguaia, homem ligado ao governador Marconi Perillo (PSDB), conseguiu que a Agência Goiana de Transporte e Obras Públicas (Agetop) abrisse o cofre. A novela, no entanto, não tinha chegado ao fim. É que apareceu Jairzinho, ou Jair Lage Filho, dono de um escritório de engenharia, mais conhecido por seu trânsito escancarado na Secretaria da Fazenda de Goiás. Jairzinho, primo do secretário da Fazenda, o deputado estadual Jalles Fontoura (PFL), decidiu que cabia a ele fazer a coleta da propina. E acabou revelando, de forma explícita, a propinolândia em que se transformaram altos escalões do governo goiano.

Detalhes – Na tarde do dia 5 de janeiro deste ano, Jairzinho e mais cinco pessoas se reuniram no centro de Goiânia, na casa de Francisco Assis Camargo, o Chico, um executivo da Triunfo. Muito à vontade e falando em nome do primo, Jairzinho contou detalhes da indústria da propina armada em Goiás. Só não esperava que toda a conversa fosse registrada por um dos presentes, o agrimensor goiano Aniceto de Oliveira Costa, que, alertado para a armação em curso, decidiu se prevenir levando um gravador no bolso. ISTOÉ teve acesso à gravação, entregue pelo próprio Aniceto, mas ela originalmente tinha outro destino. Ele pretendia entregar a denúncia ao governador Perillo, mas os rumos da conversa fizeram com que pensasse melhor. Perillo é citado por Jairzinho em toda a conversa não só como conivente com o esquema de extorsão, mas como principal beneficiário. “Ele (Jalles) ficou responsável de fazer isso e passar para o governador”, afirmou Jairzinho, durante a reunião, ao falar sobre a coleta da propina junto à construtora paulista. Eduardo Manara, chefe do escritório da construtora Triunfo em Brasília, convocou a reunião, junto com Francisco Camargo, porque queria resolver um dilema inacreditável: saber se pagava a comissão aos lobistas com quem negociou, e que acompanharam a via-crúcis da verba retida, ou diretamente ao governo.
 

Jairzinho falou todo o tempo em nome do primo secretário e, ao final da reunião de 40 minutos, chegou a telefonar para o celular do próprio Jalles Fontoura para deixá-lo a par do acertado. Combinaram até o dia em que a comissão seria entregue. “Eu tô aqui com o Eduardo Manara, da Triunfo, e com o Aniceto, ex-prefeito de Pontalina, e tô com o Brasil (Leite Camargo, subempreiteiro). É aquele problema que eu já tinha te adiantado, você lembra?”, perguntou Jairzinho a Jalles. Depois, continuou: “É do Marconi. Sei…certo. Então tá bom. Não, ele quer marcar pra entregar aqui semana que vem. Que dia que você pode estar aqui? Hem? Tá.” O encontro ficou marcado para a semana seguinte, quando, segundo participantes da reunião, a propina – R$ 150 mil – teria sido entregue a Jairzinho dentro de uma caixa de sapato. Depois de desligar o telefone, Jairzinho deixou claro o destino final do dinheiro. “Ele (Jalles) disse que o Marconi falou que esse dinheiro é pra entregar ao Marconi.”

Extorsão – O exposto na reunião entre lobistas, empreiteiros e o primo do secretário demonstra que a Triunfo não foi a única empresa a ser extorquida pelo esquema goiano. Na conversa gravada, Jairzinho conta ter ouvido de seu primo-secretário que a propina recolhida das construtoras servia para alimentar o caixa de campanha do governador Marconi Perillo. O esquema seria feito com a participação de um empresário, Valdivino Dias de Oliveira, até julho do ano passado presidente da Associação Goiana de Empreiteiros. “O governador chamou ele (Jalles) e falou: ‘Quero que você faça isso. Você chama o pessoal e eu vou pagar (o ano de) 98. Eu tô aqui com uma conta de seis milhões e tanto pra pagar de campanha.’ Passou para ele as contas e disse: ‘Você pega o pessoal de 98 que vem aqui pra receber e vai recebendo 25%.’ Isso foi conversa do governador com ele”, detalhou Jairzinho. O governador Marconi Perillo informou, por meio de seu assessor Marcos Villas Boas, que, “se tiver alguma pessoa do governo envolvida, demite sumariamente e ainda monta processo para entregar para a Justiça”. Da mesma forma, o secretário Jalles Fontoura confirmou que Jair Lage é seu primo, é empreiteiro, tem “seus interesses”, mas desautorizou que falasse em seu nome. O secretário confirmou que o primo liga para ele “corriqueiramente”, mas não se lembrava de uma conversa em particular. ISTOÉ tentou localizar Jairzinho, mas não conseguiu.

Na conversa gravada, outro assessor direto do secretário da Fazenda foi citado como participante direto do esquema para achacar empreiteiras: o chefe de gabinete, Milton Onorato. “Eu vou pagar, não sei se vou pagar os 25 (%), eu tô de saco cheio (…) Só de telefonema ontem já recebi uns 30 do Milton. Anteontem minha esposa chegou de viagem e ele acordou minha esposa umas quatro vezes”, contou Eduardo Manara, durante a reunião. O corretor e lobista Marcelo Sampaio, que, junto com Brasil Leite Camargo, cuidava de recuperar o dinheiro da construtora até Jairzinho entrar no negócio, disse que chegou a alertar o secretário para o risco do que está fazendo. “Eu, como sou muito amigo do Jalles, falei: ‘Eu tô preocupado com você porque o primeiro telefonema que chegou pro (Eduardo) Manara foi a informação de que vocês estavam cobrando 25%. E você, como secretário, acho que você tem que zelar pelo seu nome.’ Ele falou: ‘Não, Marcelo, isso foi com autorização do governador.’” Curiosamente, por causa de uma reforma numa área ao lado, a reunião entre Jairzinho e companhia era frequentemente interrompida por ruídos de serrotes, martelos e furadeiras. Uma sinfonia perfeita para uma casa que está caindo aos pedaços.

As inconfidências

“Ele (Jalles Fontoura, secretário de Fazenda) ficou responsável de fazer isso e passar para o governador (Marconi Perillo)”
Jair Lage, sobre a coleta da propina para a liberação da verba da construtora Triunfo

“Eu acertei com o Brasil (Leite Camargo, subempreiteiro): vamos pagar 25%… Agora, o que eu vim fazer aqui hoje, ô Jair (Lage), foi o seguinte: eu quero saber pra quem eu dou o dinheiro”
Eduardo Manara, da construtora Triunfo, querendo saber a quem paga a propina: ao lobista ou direto ao governo

“O dinheiro eu quero dar. De preferência entregaria na mão do Jalles. Não tenho a mínima cara-de-pau de entregar na mão dele, não vou ligar nem um pouquinho. Ou pro próprio governador, porque do jeito que está tá ficando complicado. Eu vou dizer bem claro para os dois grupos aqui. Eu vim aqui pra pagar”
Eduardo Manara

“Eu, como sou muito amigo do Jalles, falei: ‘eu tô preocupado com você porque o primeiro telefonema que chegou pro Manara foi a informação de que vocês estavam cobrando 25%. E você, como secretário, acho que você tem que zelar pelo seu nome’. Ele falou: ‘Não, Marcelo, isso foi com autorização do governador’”
O lobista Marcelo Sampaio, contando que alertou Jalles sobre a cobrança de propina

“Se fizer um rachinha – 10% pra cada um – pagava tudo. (…) Sobrava 5% pela encheção de saco que eu tô tendo e 10% para cada grupo”
Manara, ironizando a concorrência entre os cobradores de propina