Rosa Parks, costureira de uma loja de departamentos de Montgomery, rumava para o trabalho numa manhã de dezembro, em um assento reservado aos negros no ônibus municipal. Convocada a ceder o lugar a um homem branco, a senhora Parks quebrou anos de cumprimento silencioso das leis de segregação dos Estados Unidos e se negou a levantar. Em 1955, em cidades do sul do país da liberdade considerava-se um despropósito um negro não se levantar para um branco se sentar em qualquer lugar que fosse (no ônibus era lei), como hoje não se espera que uma partida de futebol pare por causa de ofensas racistas da torcida.

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Mas a costureira preferiu a delegacia a ceder o lugar. No dia de seu julgamento e nos 381 dias que sucederam a sentença de culpa da costureira, os negros da cidade não puseram os pés nos ônibus, levando as empresas de transporte quase à bancarrota. O jovem pastor Martin Luther King Jr. havia acabado de chegar ao município para assumir a igreja batista local quando recebeu o telefonema do amigo E.D. Nixon, que pagara a fiança de Rosa Parks, sugerindo o boicote ao transporte municipal, assumindo, assim de sopetão, a liderança do primeiro movimento social de sua vida.

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200 MIL
Acima, a passeata que ficou conhecida como marcha sobre
Washington (1963) reuniu mais de 200 mil pessoas em frente ao Memorial
Abraham Lincoln, na capital americana.  Abaixo, a soprano Coretta King,
viúva e herdeira da liderança pelos direitos dos negros

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No livro do historiador Clayborne Carson, da Universidade de Stanford, que chega agora ao Brasil pela Zahar, mais de uma centena de páginas de memórias, diários, cartas, gravações e transcrições de encontros inéditos deixadas por Luther King mostram como foi quase por um acaso que o Nobel da Paz de 1964 se tornou a maior voz dos direitos civis nos EUA. Carson, diretor do King Papers Project – daí o acesso privilegiado aos documentos –, reconta toda a trajetória da liderança nascida com o episódio da costureira desobediente, livre do filtro que King precisava para não diminuir com perplexidades e hesitações a função encorajadora de seus famosos discursos e para não fazer mais inimigos do que já tinha. Em anotações particulares reproduzidas na íntegra podem se ver com clareza os cortes do exímio orador sobre o que não gostaria que seus seguidores soubessem. Luther King esteve perto de desistir da incumbência de resolver a desigualdade racial dos Estados Unidos, mais de uma vez – e não sem motivos, como a narrativa deixa igualmente claro.

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APEDREJAMENTO
Ao pedir o cessar-fogo no Vietnã do Norte em 1965, Martin Luther King
foi atacado por opositores  e aliados na luta contra  a segregação racial.
Ambos os lados o acusavam, pela imprensa, de estar cuidando
de uma causa que não lhe dizia respeito

Um tom premonitório de despedida marca as últimas páginas do diário de King. “A vida é uma história contínua de sonhos destruídos”, escreveu ele poucos dias antes de ser assassinado em um quarto do Hotel Lorraine, em Memphis. “Mahatma Gandhi atuou anos e anos pela independência de seu povo. Foi assassinado e morreu de coração partido, pois a nação que desejava unida acabou dividida entre Índia e Paquistão.” Ou ainda, sobre Paulo, um dos apóstolos de Cristo: “Seu maior sonho era conhecer a Espanha, levar para lá o evangelho. Nunca chegou à Espanha. Acabou numa prisão em Roma.” O que mais impressiona no texto tão embebido pelo sentimento de descrença é que dele foi extraída uma das mais conhecidas peças de esperança de Luther King, a sua última fala pública. Chamou de “Sermão do Topo da Montanha” o discurso emocionante que datilografou um dia antes de ter a vida encerrada com um tiro no rosto, incendiando as ruas do país. “Nada me preocupa. Não temo nenhum homem”, escreveu ele, no quarto da pensão para negros do Tennessee.

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Fotos: Foto: Flip Schulke/CORBIS, Rowland Scherman/REUTERS; Tami Chappell/REUTERS; AFP PHOTO/NATIONAL ARCHIVES