Com batina e de microfone em punho, agitando o próprio corpo e o de uma multidão de fiéis, embalados por música dançante e coreografias animadas, padre Marcelo Rossi, da arquidiocese de Santo Amaro, em São Paulo, imprimiu ritmo às modorrentas missas católicas a partir do final dos anos 1990 e assim galgou o pedestal da fama. Em nome da evangelização do povo, o sacerdote cantor se tornou onipresente em programas de auditório e se transformou no artista cristão mais bem-sucedido da América Latina – amparado pela venda de milhões de exemplares de CDs, DVDs e livros. Padre Marcelo, porém, nunca gozou de prestígio entre a alta cúpula da Igreja Católica, em Roma. No ano em que comemora o 20º aniversário de sua ordenação, ganhou de presente a indigesta notícia de que fora alvo, durante quase uma década, de uma espionagem do Vaticano, mais precisamente da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão responsável por vigiar a retidão da doutrina cristã pelo mundo. O responsável pela investigação teria sido o papa Bento XVI – na época ainda cardeal Joseph Ratzinger, o prefeito dessa poderosa instituição, espécie de ministério da Santa Sé (leia quadro). Caso fosse mal avaliado por seus observadores romanos, o sacerdote brasileiro poderia ser impedido de rezar missas e celebrar a comunhão, além de ser obrigado a aposentar sua porção popstar e tudo o que advinha dela – produtos comerciais e a exposição acentuada em meios de comunicação.

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Vale lembrar que, em meados dos anos 90, a manifestação de uma espiritualidade mais efusiva, como a presenciada na Renovação Carismática Cristã, da qual padre Marcelo é simpatizante, causava arrepios nas autoridades da Igreja. No Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) chegou a publicar um documento para disciplinar a atividade. Assim, após Rossi ser acusado por um de seus pares brasileiros, cuja identidade foi mantida em sigilo, de vulgarizar a liturgia, dar ares de espetáculo às missas e fazer culto ao personalismo, o Vaticano acionou a sua Congregação para investigar se a sua ovelha estaria atravessando a cerca, justamente num dos solos mais férteis do catolicismo mundial. “O padre Marcelo se tornou o personagem principal na diocese de Santo Amaro, que fora uma subdivisão da antiga Arquidiocese de São Paulo, e servia de escada para o bispo dele (dom Fernando Figueiredo). É assim até hoje. E isso causava, no mínimo, um estranhamento”, afirma José Reginaldo Prandi, uma das maiores autoridades do País em sociologia da religião e professor sênior da Universidade de São Paulo (USP).

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ENCONTRO
Depois de se recusar a receber padre Marcelo quando esteve no Brasil,
em 2007, o papa Bento XVI entregou pessoalmente ao brasileiro o
prêmio de Evangelizador Moderno, em 2010, no Vaticano

Para André Ricardo de Souza, autor de “Igreja in Concert: Padres Cantores, Mídia e Marketing” e professor do departamento de sociologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), a investigação teve como alvo não só o padre Marcelo, mas também dom Fernando, uma vez que o bispo deu o aval para a conotação midiática e a exploração comercial da fé em sua diocese. “Se ele permitia esse ritual, era suspeito também para o Vaticano”, diz. O receio da Santa Sé, na opinião de Souza, era que um cisma surgisse no seio do catolicismo brasileiro. “Desde a Reforma Protestante, quando um clérigo ganha muita projeção, a Igreja se preocupa com a possibilidade de ele desencadear uma dissidência”, afirma. “Então, preocupava, sim, que em Santo Amaro pudesse surgir uma vertente da Igreja Católica.” Procuradas, a Nunciatura Apostólica, espécie de embaixada do Vaticano no Brasil, e a CNBB não quiseram se pronunciar sobre o assunto.

Grande mentor da Teologia da Libertação, movimento que interpreta o Evangelho à luz das questões sociais, o teólogo Leonardo Boff foi observado e punido pelo mesmo Joseph Ratzinger e sua Congregação para a Doutrina da Fé. Forçado a um silêncio obsequioso que culminou com a sua saída da ordem franciscana, em 1992, Boff não quis tecer comentários sobre alguém que, como ele, fora alvo de investigação do órgão católico. Apenas afirmou: “A inveja dos clérigos é a pior que existe. Roma não admite alguém que lhe faça alguma sombra.” Para o teólogo Jorge Claudio Ribeiro, da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, o que mais choca é o silêncio que envolve esse episódio. “Ninguém sabe, ninguém comenta, não se sabe quem denunciou… Não gosto do estilo do padre Marcelo, mas ele não foi e nem está sendo tratado condignamente.

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Chanceler da Mitra de Santo Amaro, o padre Gílson dos Santos afirma desconhecer qualquer investigação feita pelo Vaticano contra um religioso da diocese. Em defesa do padre Marcelo, ele diz que, apesar da peculiaridade, ele nunca se desviou da doutrina católica. “Se fôssemos alvo de investigação, a congregação enviaria um observador aqui para conversar com o dom Fernando, acompanharia a nossa rotina e as missas do padre Marcelo. Ela jamais deixaria de nos dar direito à defesa”, diz. Em 2009, não conseguindo provar as acusações, o Vaticano encerrou as investigações contra o sacerdote brasileiro. No ano seguinte, padre Marcelo, que não pôde se encontrar com Bento XVI em 2007, quando este esteve em visita ao País, recebeu, em Roma, das mãos do papa, o prêmio de Evangelizador Moderno. Estava dado o aval para seguir cantando e pulando em paz.


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