Maria Justa, José Pedro, João da Costa e mais de 300 pequenos agricultores do sertão de Pernambuco e da Paraíba foram dormir com o sonho de uma vida melhor e acordaram, seis anos depois, com um pesadelo. Pior que enfrentar a seca – que destrói lavouras, mata os animais e ameaça 11 milhões de nordestinos com o flagelo da fome – é saber que ao nada que possuem foi acrescentada uma dívida impagável com o Banco do Nordeste (BNB). Pouco mais de R$ 6 milhões saíram dos cofres do banco em 1994, oriundos dos fundos do Amparo ao Trabalhador (FAT) e Constitucional do Nordeste (FNE) para projetos que previam sementes, irrigação e eletrificação rural a fim de incrementar o plantio de algodão, cultura tradicional na região do Alto Sertão do Pajeú. Na pequena São José do Egito, a 400 quilômetros do Recife, recursos federais da ordem de R$ 3,5 milhões, liberados pelo BNB, foram utilizados em um projeto fraudulento. Montaram-se cooperativas aos trancos, incentivadas por funcionários do banco, para pôr a mão na verba. Com isso, teve gente induzida a assinar falsas fichas de cadastro sem saber que assumia dívidas que hoje já ultrapassam a casa dos R$ 40 mil por pessoa. Ao contrário daqueles que ajudaram a provocar rombos bilionários na Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e do Nordeste (Sudene), os sertanejos perdem o sono estudando como pagar o projeto que prometia ser a sua redenção. No golpe, contam os agricultores, estiveram envolvidos funcionários do BNB, projetistas e fornecedores.

Numa região onde a chuva é ouro, os sertanejos tomaram empréstimos através de cooperativas, com base em projetos, ditos tecnicamente aprovados, que previam água em abundância e luz para a produção de algodão numa região de seca. a maracutaia que lesou os agricultores de São José do Egito e cidades vizinhas chegou a Patos, na Paraíba, município também açoitado pela falta d’água. A farra, que envolve políticos locais, queimou dinheiro público em nome da capacitação e do aumento de produção e renda de uma população carente de projetos e recursos. A promessa de ser iluminado pelo “farol do desenvolvimento”, slogan do BNB, atravessou o sertão e bateu no litoral. Com o mesmo conto-do-vigário, foi a vez de os pescadores caírem na rede. Os projetos para a pesca artesanal na costa de Pernambuco, a maioria assinada pelo engenheiro José Geraldo e pelo economista Gabriel Calzavara, hoje o primeiro homem da pesca no Brasil (é diretor do Departamento de Pesca e Aquicultura, ligado ao Ministério da Agricultura), naufragaram em um mar de corrupção. Dos R$ 20 milhões do BNB para a pesca no Nordeste, R$ 4,6 milhões foram aplicados no litoral pernambucano. Superfaturamento, favorecimento, influência política, pagamento e recebimento de propina por funcionários do banco e fornecedores fazem parte de um pacote de denúncias que se encontra no Ministério Público.
 

A Constal, empresa de propriedade de Darci Chaves Araújo, não cumpriu em São José do Egito e em Patos (PB) todo o projeto de eletrificação rural para o qual foi contratada. Mas não deixou de receber pelo serviço. Darci é sobrinho da deputada paraibana Francisca Motta (PMDB), braço direito do governador José Maranhão (PMDB). O contrato da Constal com a Cooperativa Agrícola Mista dos Irrigantes do Vale do Pajeú (Caivep), para beneficiar 200 agricultores de São José do Egito, determinava o pagamento por etapas até o fim da obra, “o que não foi obedecido”, afirma Maria Justa, diretora administrativa da cooperativa. Ela acusa o banco de negligência por liberar a verba sem fiscalização e de ceder a pressão política. A cooperativa entrou na Justiça contra o BNB, a Constal e o ex-presidente da Caivep Ivandelson Siqueira.

Outro alvo do mesmo golpe foi a Cooperativa Agrícola Mista de Patos (Campal), com prejuízo para 150 associados. Darci Chaves é acusado pelo advogado Márcio Wanderley de ter desaparecido após embolsar 70% do valor da obra de eletrificação e só ter realizado 30% dela. E mais: de ter retirado ilegalmente material elétrico que estava depositado nos galpões da Campal. “Duas empresas de Darci operaram nesses projetos, a Metal Nobre, que vendia os equipamentos, e a Constal, que fazia a eletrificação. Darci conseguiu, em duas liberações, pôr as mãos em 70% dos R$ 700 mil destinados à obra”, acusa Wanderley, que também responsabiliza o BNB por não fiscalizar a execução dos projetos. O advogado ressalta que a política local exerce grande influência no banco presidido por Bayron Queiroz, afilhado político do governador do Ceará, Tasso Jereissati.

Maracutaia – “Quando aqui chegaram prometeram o mundo, com ou sem seca. Com uma safra pagaríamos o empréstimo e com a outra teríamos o lucro”, conta Maria Justa. Ela foi uma das poucas a receber o pacote completo (poço, kit de irrigação, bomba e luz). “Mas de que adianta isso se o poço não dá água, e a pouca que deu nem de longe dava para irrigar o suficiente para produzir e saldar o financiamento?”, pergunta Justa. João da Costa é mais um sertanejo desolado. Ele mostra o poço vazio, os canos amontoados e a área demarcada de três hectares, destinadas ao plantio do algodão. “A gente peleja por um dinheirinho, mas era muita esmola pra um santo só. Teve gente que entrou no projeto sem ter terra. Tinha algo muito errado e o banco não quis ver”, diz João, que avisa a mulher e as três crianças que a palma (uma espécie de cáctus) que seria dado ao gado vai para a mesa da família por causa da seca. Em Pernambuco, 56 dos 184 municípios estão em situação de calamidade.

José Pedro, o seu Dadá, divide 27 hectares com nove irmãos. Todos eles assinaram o projeto. Mas água que é bom, nada. “O poço foi furado, e só acharam areia. Eles só queriam dinheiro. Quando estavam estudando onde furar perguntei por que não aumentavam a cacimba que eu já tinha, mas foram teimosos. Ou o poço novo ou nada”, conforma-se, rezando para que chova. A lavoura de onde tira o feijão e algum milho para alimentar a família não existe mais. A consequência do serviço prestado pelas empresas que atuaram no projeto pode ser vista em boa parte das terras de Dadá e seus vizinhos. Os poços não deram água. Não há fios nos postes, que, junto com os transformadores, apodrecem ao relento.

Dez dos 200 agricultores ligados à Caivep nada receberam e souberam há poucos meses que estão devendo ao BNB. Um deles é o vereador de São José do Egito Arlindo Brito (PFL). Sentado ao lado da mulher na varanda de sua casa, em Riacho do Meio, conta que foi pressionado pelo banco e por técnicos da cooperativa para fazer o empréstimo. Brito não quis saber de eletrificação, pois já tinha feito a sua. “Pediram que eu assinasse apenas uma ficha de cadastro. Se tiver de pagar por uma coisa que não recebi, é melhor pegar a espingarda e voltar para o cangaço”, afirma o vereador. Através de carta protocolada, agricultores avisaram o BNB do imbróglio que envolvia seus funcionários, a cooperativa e os fornecedores. Mas nada aconteceu.

Darci Chaves conversou com ISTOÉ em João Pessoa, mas não quis ser fotografado. Negou que a Constal, quando atuou em Patos, fosse sua. Disse que seus serviços na região foram executados pela Metal Nobre. Mas não soube dizer quando comprou e vendeu suas empresas. “Fizemos todo o trabalho em São José do Egito”, assegurou, apesar de avisado de que a reportagem esteve em várias propriedades da região e constatou a falta de postes, fios e transformadores. Quanto a Patos, base eleitoral da tia Francisca Motta, disse ter faltado apenas “uns 30% do serviço, porque os agricultores não queriam mais”. Negou ter retirado o material sem autorização e justificou as acusações dizendo que tudo é briga política. Ivandelson Siqueira, que saiu de São José do Egito depois do problema com a Caivep, foi encontrado na Paraíba graças a Darci, que forneceu o número do seu telefone celular. Ivandelson defendeu-se das acusações dizendo ter solicitado um estudo sobre a bacia hidrográfica do Pajeú para respaldar tecnicamente o projeto. “Eles garantiram que havia água suficiente lá”, justifica. O ex-presidente da Caivep não considera irregular ter posto a Irrisolo, sua empresa, para fornecer os kits de irrigação. Pressionado pelas evidências de uma auditoria feita pela atual diretoria da Caivep, disse que Darci recebeu R$ 1,3 milhão em menos de 120 dias, apesar de não ter concluído o serviço. “O banco fiscalizava todos os itens relacionados à irrigação. Por que não fez o mesmo com a eletrificação?”, pergunta Ivandelson.

Maré baixa – No litoral de Pernambuco, ISTOÉ constatou a mesma realidade: projetos fechados feitos somente por técnicos já credenciados do BNB. Dessa vez, para a compra de barcos, equipados com aparelhos de navegação por satélite (GPS) e ecossonda (sonar que mostra o movimento dos peixes e presença de cardumes), motores e material de pesca. As empresas escolhidas pela maioria das colônias e associações foram apresentadas pelos projetistas, conforme revelaram os pescadores. O engenheiro José Geraldo e o economista Gabriel Calzavara assinaram a maioria dos projetos e incentivaram a organização de associações de pesca para buscar o empréstimo. José Telino, presidente da Federação das Associações de Engenheiros de Pesca do Brasil, contou que consultores e funcionários do BNB procuraram as colônias para oferecer o dinheiro. “Os pescadores não tinham incentivo do poder público desde a década de 70”, lembrou Telino. Dos R$ 20 milhões liberados para o litoral nordestino, 4,6 milhões foram a pique em águas pernambucanas graças à farra dos intermediários. ISTOÉ conversou com pescadores de seis das 15 colônias que apostaram no projeto. Contaram que, durante os estudos, a preferência deles quanto ao tipo de embarcação, marca e modelo dos equipamentos não foi levada em consideração pelos autores do projeto. A consultoria, asseguraram, também definiu todos os itens e indicou onde deveriam ser comprados.

A maioria dos projetos tinha um teto de R$ 424 mil. Algumas colônias questionaram o valor, propuseram mudanças para adequá-lo às suas necessidades, mas recuaram diante da afirmação dos projetistas e funcionários do banco de não haveria empréstimo de outra forma. Quando veio a público o golpe, batizado pelo Diário de Pernambuco como “Escândalo do Anzol”, o presidente da Colônia de Pau Amarelo, Israel de Lima e Silva, atirou para todos os lados. Declarou ter recebido e dado propinas. Acusou os funcionários do BNB, fornecedores e projetistas de terem se beneficiado dos recursos liberados. Hoje, Israel está mais comedido. Em conversa com ISTOÉ, afirmou que só volta a falar de propina em uma CPI sobre o BNB, proposta pelos deputados federais de Pernambuco Pedro Eugênio (PPS) e Fernando Ferro (PT). No entanto, Israel confirmou que José Geraldo e seu sócio Calzavara não deram assistência técnica e que não recebeu todos os equipamentos. Em documento que atende a requerimento feito pelo deputado Pedro Eugênio sobre os financiamentos, o BNB revela que, em maio de 1997 foi avisado por uma sócia da empresa Fibrape (à qual foi encomendada a maioria dos 111 barcos para Pernambuco) sobre pagamento de propina a seus funcionários.

Barcos fora das especificações, falta de conjuntos de navegação e ecossondas são reclamações registradas de norte a sul do litoral pernambucano. Em Pontas de Pedra, o presidente da colônia de pescadores Fernandes de Barros lembra que as 16 embarcações encomendadas à Fibrape deveriam ter dez camadas de fibra e vieram com apenas três, além de terem sido entregues 19 meses depois do prazo. A colônia foi a única das 15 que tomaram o empréstimo e continua atuando sem dívidas. A maioria fechou as portas. Acostumados a se orientar pelas fases da lua e pelas luzes da costa, os pescadores transformaram o GPS e a ecossonda em enfeites por falta de assistência e treinamento. Equipamentos financiados pelo BNB foram vendidos por R$ 500, quando custam cerca de R$ 4 mil.

A quantidade de pescado, segundo autores do projeto, necessária para o pagamento do empréstimo de início não parecia ser história de pescador: 200 quilos ao mês por barco. Em Porto de Galinhas, o então presidente da colônia, Josias Clementino de Jesus, adquiriu 13 barcos equipados, uma fábrica de gelo e um carro. “Eles calcularam só peixe de primeira. Acreditamos na eficiência dos equipamentos novos para aumentar a produção. Mas sem assistência, muitos desistiram de usá-los”, conta Josias. Segundo ele, pior que a falta de assistência foi saber que a maioria das colônias também entrou no empréstimo. “Temos hoje excesso de barco, falta de pescador e pouco peixe”, lamenta ele.

Mas nem todos os pescadores morderam a isca. Joana Mousinho, presidente da Colônia de Itapissuma, foi alertada por um amigo que o projeto não se adequava às necessidades da comunidade, que vive basicamente de ostras, mariscos e camarão. “O BNB demorou a chegar e quando veio foi empurrando projeto goela abaixo. Vi logo: casa que começa do teto desaba”, reclamou Joana. Ela tentou obter um crédito para reformar a baiteiras (tipo de embarcação para mariscos e ostras). “Mas éramos obrigados a comprar barco novo e a motor. Fui pressionada por alguns pescadores de Itamaracá para entrar. Resisti. Eles formaram uma associação com a ajuda dos projetistas e agora não sabem o que fazer para pagar 16 barcos”, lembra Joana. Suspendendo um balaio com camarões, ela resume a vida da classe que lidera: “Somos perseguidos, desvalorizados e agora estamos com a pecha de caloteiros. Alguém foi beneficiado com tudo isso e quem paga somos nós.”  

BNB responde

O superintendente do BNB para os Estados de Pernambuco e Paraíba, Manoel Brandão, respondeu por e-mail às acusações de que o banco se omitiu e, com isso, abriu caminho para as fraudes, superfaturamento e projetos tecnicamente inviáveis. Brandão nega a ausência de apoio técnico à pesca e diz que não é verdadeira a afirmação de que as colônias não estão produzindo. “O potencial de pesca nos dois Estados é suficiente para a geração de receita capaz de fazer face aos compromissos financeiros de cada pescador”, afirma Brandão. Sobre o pagamento de propinas, afirmou que o banco se antecipou às denúncias e que, após auditoria interna, demitiu os funcionários envolvidos.

O superintendente negou que o BNB tenha beneficiado a empresa Constal ao liberar o dinheiro do projeto sem a execução total da obra em São José do Egito e Patos. Cada parcela de desembolso, diz Brandão, só é liberada após a comprovação do andamento da obra. Quanto à acusação dos sertanejos de que o banco não impediu a aplicação do golpe da eletrificação pela mesma empresa em cidades diferentes, Brandão reagiu: “Não havia, naquele momento, nenhum fato desabonador da Constal. Não tínhamos como vetar a empresa. Entretanto, caracterizada a irregularidade, a Constal ficou impedida de fornecer bens e serviços através de financiamentos do BNB”, concluiu o superintendente.