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 Em abril de 1989 Lula estava muito mais próximo do líder sindicalista que parou o ABC paulista no fim dos anos 70 do que do presidente da República popular que se tornaria pouco mais de uma decáda depois. Nesta entrevista publicada no dia 12 de abril de 89, o presidente do PT se mostra um candidato ainda atrelado a conceitos ideológicos estanques, apesar de reforçar a todo momento que, eleito, não pretende se tornar uma espécie de ditador socialista à brasileira. Neste momento, quase sete meses antes das eleições, Lula parece não enxergar a força de Collor, ou ao menos procura não transparecer preoucupação com a figura salvadora criada em torno do ex-governador de Alagoas, que meses antes recebera o título de "O Caçador de Marajás". Ao contrário, Lula diz esperar disputar o segundo turno com Brizola e acredita que se o ex-governador de São Paulo Orestes Quércia disputar as eleições, o PMDB se torna um competidor de peso. Como se veria poucos meses depois, as avaliações do candidato do PT estavam equivocadas.

 

O candidato do PT à Presidência da República, Luis Inácio Lula da Silva, voltou há pouco tempo da Europa e já se prepara para novas viagens, aos Estados Unidos, à União Soviética e à China. Passa por aí, no seu entendimento, o melhor aprendizado como candidato, mesmo que as circunstâncias dos países mais avançados do mundo sejam bem diferentes das condições brasileiras. Esta entrevista é o resultado de um longo papo matinal, concluído com um almoço numa churrascaria de São Bernardo do Campo. O cardápio incluiu frango com polenta e frango à caçadora, e foi regado à batida de maracujá e chope. Ao cabo de um almoço destes, anos atrás, a mulher de Lula, d. Marisa, observou o marido afundado em uma poltrona , em estado semitelárgico, e sentenciou, lapidarmente: “E ainda dizem que isso aí é salvação dos trabalhadores”.

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Lula, o parlamentarista
"Fui contra na Constituinte, porque era casuísmo"

O senso de humor continua vigorando na casa dos Lula da Silva. Por isso, a despeito da candidatura e das experiências internacionais, os hábitos familiares são sempre os mesmos, sem exclusão das preferências gastronômicas. No mais, d. Marisa orgulha-se com toda razão, das fotos que tirou com o Papa.

ISTOÉ — O sr. acaba de voltar de uma viagem a Europa. O sr. ainda acha que o Terceiro Mundo é a vítima da exploração dos ricos?
Lula—
Antes de ir à Europa, eu fui a Cuba, Nicarágua e Chile. Para ser candidato a presidente preciso ter uma noção mais atenta dos problemas do mundo. Ninguém pode negar que o chamado Primeiro Mundo ainda funciona, em certos aspectos, como uma metrópole em relação ao Terceiro Mundo. Mas eu penso que esta não é a única verdade. Por exemplo: a experiência da peãozada dentro da fábrica é de que numa empresa estrangeira frequentemente ganha-se melhor, goza-se de melhores condições de trabalho, vive-se de forma mais decente. Qualquer dirigente sindical vai dizer em alto e bom som que o grande sonho de um trabalhador de uma empresinha é trabalhar numa Volkswagen, numa Mercedes, ou seja, numa empresa multinacional que quase sempre se paga melhor. Lá vai outro exemplo. Digamos, Portugal. Não me consta que explore o Terceiro Mundo, embora tenha sido um país colonizador. A Espanha, também não explora, embora também tenha sido um país colonizador. Agora, a gente percebe que o povo português e o povo espanhol vivem muito melhor do que a gente. Há uma relação de respeito entre as pessoas que a gente não vê no Brasil. Eu acho que ainda há muitos empresários brasileiros que não têm capacidade, ou não querem, defender a sociedade em que acreditam. Vejamos. Uma sociedade capitalista pressupõe uma sociedade de consumo. Por quê? Porque quanto mais consumo, mais emprego, quanto mais emprego mais consumo. Esta é a lógica. Mas há empresário brasileiro afirmando excelência do capitalismo sem praticar o capitalismo. Este empresário, em lugar de investir na empresa, especula no mercado financeiro, aplica em seus bens pessoais, quando não deposita no Exterior. Hoje em dia fica difícil alegar que o Brasil é pobre por causa da exploração dos países ricos. Em parte é verdade, mas só em parte.

ISTOÉ — Por quê?
Lula–
A relação comercial ainda é meio imperialista. A relação comercial entre um país rico e país pobre lembra o tratamento que uma grande loja em São Paulo dá ao coitado que vai comprar pela primeira vez uma televisão. Neste jogo de tênis, o Brasil é o pegador de bolas em cores. No caso da divida externa, por exemplo, o Brasil teria, de qualquer forma, grandes dificuldades para tentar uma negociação inteligente. Agora, é preciso dizer também que isto se deve à nossa fraqueza, à nossa incompetência. O Brasil não joga. Sabe aquele jogo de tênis que tem dois caras jogando e um catando bola? O Brasil é o catador de bola. O Brasil não tem iniciativa política porque não se faz respeitar. Não somente junto aos governos estrangeiros, mas também junto àquilo que eu definiria como o movimento vivo da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Itália, da Espanha e de Portugal. A sociedade. A sociedade civil. Sindicatos, universidades, no mundo das comunicações. Por enquanto, nada, nesses setores, pode ser percebido como um sinal de mudança da política brasileira, dos nossos desequilíbrios sociais etc. etc. Na Alemanha, um empresário de Düsseldorf me disse: “Eu não posso admitir que você afirme que a empresa alemã só vai para o Brasil porque a mão de obra é barata.” Bem, a nossa mão de obra é barata mesmo. Mas é engraçado que aquele empresário mesmo pagando aqui um terço do que pague para os trabalhadores lá, ainda paga mais do que muitos empresários brasileiros. Então, eu vou defender dentro do PT que a gente crie um ou dois grupos para ir estudar um pouco mais a fundo o que é o Projeto Europa—92;.o que está acontecendo nos Estados Unidos e no Canadá; o que está acontecendo no Japão e no mundo asiático. A gente precisa abrir os olhos.

ISTOÉ—Quer dizer, o PT precisa aprender?
Lula—
O PT pode abrir um debate para que o brasileiro compreenda que ele não pode ficar à margem das mudanças que estão ocorrendo no mundo. Por exemplo, é importante dizer que essa união da Europa também tem muito de anticorpo. “Vamos nos garantir contra o Japão e os Estados Unidos”, é isso que eles estão pensando. E o Brasil precisa tomar alguma atitude porque senão vamos ter como parceiro a Etiópia.

ISTOÉ— O sr. sentiu na Europa algo que poderia Ievá-Io a pensar que essa gente gostaria de manter o Brasil em seu atraso?
Lula-
Na Europa, conversei tanto com um ministro que me conhecia das divergências de 79, quando ele era diretor da Volkswagen na Alemanha, e a gente começou a fazer a greve na Volkswagen, quanto com um dirigente sindical francês que cansou de tomar cachaça comigo em São Bernardo e hoje é ministro de Mitterrand. Conversei com muita gente e não exclusivamente com amigos. O que sinto foi que todos estão convencidos da importância do Brasil, quer dizer, acham que este pais poderia ter um papel mais destacado na política internacional, nas discussões da ordem econômica. A gente sente que eles acreditam nisso. De verdade, eles não entendem por que o Brasil não sai do lodo. Agora eles sabem que a fuga de capitais no Brasil passa dos USS 30 bilhões. Ouvi esta cifra de autoridades da Suécia, Alemanha, França e Itália. Ouvi do Felipe González. Eles argumentam: “O Brasil precisa investir no Brasil. Vocês não podem ficar pedindo ao mundo que ajude vocês quando o capital de vocês está saindo para banco internacional.”

ISTOÉ- Falando de dívida externa. Para o cidadão comum, uma negociação bem-sucedida só teria sentido se o País amadurecesse e se o governo fosse sério. Caso contrário, que vantagem há em reduzir os juros da divida? Que garantia temos de que o capital poupado seria aplicado honesta e inteligentemente no Brasil?
Lula-
Nós estamos chegando ao limite, de fato. O prejuízo de não pagar é igual ao prejuízo de pagar. Em todo caso, o desenvolvimento é impossível se temos de desembolsar mais do que ganhamos. Mas o mundo parece preocupado com essa questão da divida externa, até porque as pessoas se dão conta de que pode acontecer no Brasil o mesmo que aconteceu na Venezuela, só que em escala muito maior. Temos ai à ideia do Plano Brady. Há uma proposta do Mitterrand: um pool de bancos adquiriria a divida pelo valor do mercado secundário e renegociaria a partir dai. Há gente do governo italiano e do próprio movimento sindical achando que o Brasil é pouco esperto. Ao invés de ficar brigando pela Amazônia, deveria utilizar esse debate extraordinário que está acontecendo no mundo para tirar proveito e discutir a divida externa em patamares mais favoráveis. Eu disse por lá que se é verdade que a Amazônia é o pulmão do mundo, é verdade também que a dívida externa é a pneumonia. O governo Sarney faz sua demagogia nacionalista, mas me parece que poderia tirar proveito de um debate sobre a Amazônia com uma certa tranquilidade. Eu não tenho experiência de negociação diplomática, tenho experiência de fazer greve.E eu sei como é que a Volkswagen conversava comigo, dependendo do nível de organização que eu tinha. Quando eu estava mal-organizado, ela batia mais, quando eu estava bem-organizado, eu apanhava menos. Pode até negociar em bases bem favoráveis.

Sarney quer transformar a Amazônia na nossa Malvina

ISTOÉ— O sr. não é nacionalista nesta questão da Amazônia?
Lula-
Olha, é bem capaz que o Sarney, mesmo não sendo general, queira transformar a Amazônia nas Malvinas do Brasil. Quer dizer, em nome do nacionalismo, ele poderia imaginar que dá para convencer o povo e uní-lo na defesa de um território que é falsamente brasileiro, porque já tem tanta multinacional lá….Eu li uma revista italiana que publica uma lista de multinacionais estabelecidas na Amazônia, a lista não acaba mais.Também sabemos que na Amazônia uma área de 260 mil quilômetros quadrados, equivalente a quase todo o território da Itália, está nas mãos de 18 proprietários, no meio tem até uma empresa japonesa. O mundo não quer tomar a Amazônia, até porque em parte já tem. De resto, não vi um único governo ou um único movimento na Europa que fale em internacionalizar a Amazônia. O que eles querem é que a Amazônia não seja destruída.

Me dá pena que a direita ainda pense em Jânio Quadros

ISTOÉ- O sr. acha que os governos brasileiros acabam envergonhando o Brasil?
Lula-
Nesse plano da negociação internacional nós temos mesmo algumas experiências tristes. Um dia o Maluf viajou ao Japão com um grupo de empresários e o mundo foi informado que as pessoas da comitiva roubaram pérolas umas das outras. Receberam de presente ostras com pérolas, e as ostras sumiram. No tempo das viagens do presidente Figueiredo, a notícia do dia seguinte à volta dava conta de que o pessoal entrava trazendo equipamentos para montar uma rádio. Ou seja, contrabando oficial. Hoje, Sarney para fazer uma viagenzinha vai em dois aviões, como se, dando crepe no alto, o outro socorresse. Comportamento assim é que deixa o Brasil pequeno. Nesta viagem que a gente fez, os motoristas das embaixadas logo iam perguntando: ‘Qual é o dia em que vocês vão fazer turismo?” E, como não tinha dia de turismo, eles ficavam estranhando. E algo que me deixou muito orgulhoso foi à carta de um embaixador – prefiro não dizer o nome. Ele fez questão de passar para o papel: “Vocês foram primeira coisa séria que aconteceu por aqui.”

ISTOÉ- Há dez anos surgia o PT, que hoje concorre com chances para a Presidência. O sr. esperava por isso?
Lula-
Dez anos é um tempo muito curto na vida de um partido como é curto na vida de qualquer coisa. Depois da frustração de 82, quando cheguei a imaginar que tinha chance de me eleger senador, eu cai na realidade e resolvi investir mais em médio prazo. Ou seja, seria preciso ter um trabalho de maior consolidação, embora o partido devesse sempre participar de todas as eleições. Mas eu já não via as eleições como a coisa principal, eu achava que o trabalho de organização do partido era a coisa mais importante. Ocorre que hoje as circunstâncias de certa forma favorecem o PT. Enquanto o PMDB mostrou todas as suas contradições, o PT mostrou coerência. É o confronto que começa promovendo o PT. Para nós teria sido muito mais cômodo ir ao Colégio Eleitoral, para dizer, em vez de “diretas-já”, e “mudança-já” e “muda com Tancredo”. Mas, o que dizíamos no PT? Dizíamos que o leque de alianças feito em torno de Tancredo não iria proporcionar qualquer mudança, porque os compromissos assumidos eram enormes. Agora já sabemos que foi assim mesmo, não há mais dúvidas a respeito. Enfim, o tempo nos deu razão. Este tipo de firmeza de propósitos, que, por exemplo, levou o PT a optar pela posição mais incômoda há quatro anos, fortalece muito o partido. Eu tenho clareza das dificuldades que nós vamos ter numa campanha, eu tenho clareza da fragilidade econômica do PT. Mas também tenho clareza da fragilidade dos adversários. E reparem, para mim não é motivo de alegria, não, verificar que a direita, 25 anos depois do golpe, só é capaz de pensar em um candidato chamado Jânio Quadros. Em todo caso, graças a tudo isso, o PT é o partido mais consistente em termos de militância. Claro que não estamos organizados em todos os municípios, mas o grau de fidelidade, de convicção, de um militante do PT não se compara com a de qualquer filiado a qualquer partido. Não é por acaso que nas últimas eleições ganhamos em São Paulo, Porto Alegre, ABC etc. etc. Agora, o PT sabe que essas vitórias aumentam a nossa responsabilidade. Vamos ter de provar que temos competência de atender és reivindicações que fazíamos quando éramos oposição. Eu brinco sempre com o pessoal do partido: o jeito é não fazer reivindicações absurdas, porque depois a gente vai ter de cumpri-las.

ISTOÉ- E a prefeita Luiza Erundina está cumprindo?
Lula-
Eu acho que ela vai cumprir. Não preciso lembrar as divergências que eu tinha antes das eleições. Agora, a Erundina é uma companheira de muito caráter e eu penso que ela vai fazer uma ótima administração.

ISTOÉ– Há quem diga que o PT também é uma frente, como o PMDB. Dentro dele se abriga um número muito grande de grupos, de facções, de movimentos.
Lula-
É verdade. Mas eu acho que é melhor que estejam dentro do PT do que em outro partido político. Nestes dez anos de PT, aprendi a conviver dentro da diversidade. Isso pode soar estranho para alguns amigos meus, mas eu acho que a existência desses grupos, embora crie divergências, discussões muito ásperas, brigas e tudo mais, acaba sendo benéfica para o partido. Por isso o PT não cai no imobilismo. Se o Lula fosse um caudilho, que baixasse ordens, decretos, leis, medidas provisórias, e os petistas apenas obedecessem, teríamos toda chance de virar um partido comum. Essa riqueza de debates no PT às vezes cansa, mas enriquece o partido.Esse gênero de divergência eu já fomentava no sindicato. O pessoal de esquerda é o mais sectário, mas é útil, porque apontam para onde você não deve ir. Às vezes, você descobre logo que não vale a pena dar ouvidos a esses companheiros – em compensação, eles não deixam que você caia no oposto. Esquerda sectária é útil porque mostra onde você deve ir

ISTOÉ- Quer dizer que o sr. é do PT que não ocupa a fábrica?
Lula-
As fábricas começaram a ser ocupadas em São Bernardo…

ISTOÉ– Certo, mas hoje em dia…
Lula-
Nós começamos a ocupar as fábricas porque era a única possibilidade que tínhamos de não apanhar da policia. Essa tática de ocupação de fábrica começou pela Fiesp. A partir do êxito da greve de 78, a Fiesp produziu um livrinho para orientar os empresários: que quando os trabalhadores saíssem da fábrica eles deveriam fechar os portões e colocar a polícia lá dentro. Em 79 fizemos greve em São Bernardo do Campo, os trabalhadores saíram e a Volkswagen foi ocupada pela polícia. Então, a gente decidiu ficar de vez dentro da fábrica. Primeiro, você evita o furador de greve. Ninguém ousa ir trabalhar se você estiver dentro da fábrica, ocupando a fábrica. Ao mesmo tempo é uma garantia contra a polícia, contra a provocação e contra a cachaça.

ISTOÉ— Tudo bem, mas 89 é diferente de 79. Hoje, o certo é fazer greve fora precisamente para impedir a intervenção da polícia. Já se você ocupa a fábrica, você dá chance para a polícia aparecer. A situação se inverteu, não é mesmo?
Lula—
Eu concordo. Tanto que nós brigamos como desgraçados para aprovar na Constituição o texto tal como está. Ainda assim, tem muitas autoridades e muitos empresários que ainda não amadureceram para o entendimento de que a grave é um direito de todo cidadão.

 

Luis Antônio de Medeiros é um surfista do movimento sindical.

 

ISTOÉ— Que tal o chamado sindicalismo de resultados?
Lula—
Já faliu. O sindicalismo de resultados foi criado pelo jornal O Estado de S.Paulo, pelo Afif Domingos, e por um assessor do Luís Antonio de Medeiros, um lua-preta, um cientista político. Tudo bem, tudo previsível. Quando eu fui cassado, esse mesmo cientista político teve uma conversa com o presidente do sindicato dos eletricitários, o Magri, e comprometeu-se a transformá-lo num novo Lula. Parece que no começo trabalhava com o Joaquinzão, mas o botou na rua. Então ele foi trabalhar com o Magri, e depois com o Medeiros, quando ele ficou com a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Eles passaram a se reunir com o Afifi para definir na Constituinte uma linha de combate contra a aprovação da estabilidade, 40 horas etc. Nesse tempo o Luis Antônio aparecia no Bom Dia Brasil da Globo, toda hora, para dar pau na Constituinte. Eu até mandei uma carta para a direção da Globo, uma vez, dizendo que tínhamos notado uma coisa: o trabalho da Comissão de Sistematização terminava às 3h da manhã e poucas horas depois o Luis Antonio estava no vídeo comentando o resultado sem ter assistido ao final da votação, enquanto nós tínhamos 12 sindicalistas do melhor nível que tinham ficado até o encerramento da sessão. No mínimo, um deles deveria ser chamado. No outro dia mandaram chamar-me para ir no programa Bom Brasil. Depois que terminou a Constituinte, surgiu aquela historia do Pacto Social. E Luis Antonio apostou alto no Pacto Social. E como não deu certo o Pacto Social, então ele tirou rapidamente o time de campo. Mas ele já aparece para a sociedade como a figura em busca de uma boa onda. É um surfista do movimento sindical. O Luis Antônio passa 24 horas por dia na porta da fábrica dizendo para o trabalhador que tem de lutar por melhores condições de vida. Ai, chega no dia das eleições, ele vai trabalhar para o dr. Antônio Ermírio de Moraes.

ISTOÉ— O sr. está dizendo que Medeiros não tem coerência. Mas o PT tem. Quer dizer que, se o sr. for presidente, seu governo será socialista.
Lula-
De saída, quero deixar bem claro que os gestos são mais importantes do que os discursos. Agora, a questão do socialismo. O PT já deu um passo adiante. Quando nós fizemos a última reunião do Diretório Nacional acertamos que uma casa não se constrói a partir do teto, mas a partir dos alicerces. O programa do PT é socialista, o socialismo é o objetivo final do partido. Mas como candidato a Presidência não tenho de apresentar o meu projeto de socialismo, eu tenho de apresentar o meu projeto de governo. E em meu projeto de governo não cabe socialismo por decreto-lei, mas cabem medidas destinadas a combater a fundo a fome deste país. Acabar com a fome de 45 milhões de brasileiros, isto sim seria uma verdadeira revolução. Uma revolução num país com o dobro de habitantes que a Argentina, igual à Espanha e Portugal juntos. É isso que nós vamos mostrar para a sociedade. Nós vamos elaborar um programa de governo, com ênfase em pontos muito importantes. Por exemplo, a reforma agrária. Meu programa de governo não vai confundir-se com o programa do PT. Nós precisamos tirar a reforma agrária do debate ideológico entre os defensores da propriedade privada e os defensores da coletivização da propriedade. Faz cinco séculos que a questão está encruada. E o Brasil não pode ficar tendo como única experiência da reforma agrária as Capitanias Hereditárias. Nós temos de mostrar que só tem sentido discutir a reforma agrária se a gente tiver competência e condições para discutir também uma política agrícola capaz de satisfazer a milhares de pequenos produtores que hoje têm medo da reforma agrária porque pensam perder nela, tomados à força, seus cinco hectares, seus dez hectares, seus 200 hectares. Temos de dizer que nisso não vamos mexer. Nós temos de dizer onde é que nós vamos mexer e por que que vamos mexer. Mas, ao mesmo tempo, é preciso convencer a sociedade de que nenhum país do mundo consegue desenvolver-se se não houver uma política justa de produção agrícola a qual exige por sua vez uma reforma agrária. No programa de governo não vai caber a discussão sobre tipos de socialismo, mas uma proposta realista de solução para os nossos problemas. Por exemplo: que tipo de projeto educacional o PT traz para um país cujo índice de analfabetismo cresce enquanto diminui, quando não desaparece, no mundo todo. Estamos com 31 milhões de analfabetos. Para acabar com 31 milhões de analfabetos tem de haver uma revolução também na educação. E não vai ser com o programa Minerva. Não me perguntem agora qual é a minha proposta a respeito, neste exato instante. Eu não tenho proposta, porque não sou especialista em educação. Mas outro dia eu fui para um debate e estavam lá Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso e o ex-governador Montoro. Um debate sobre meio ambiente. Covas abriu uma pasta e começou a falar sobre a camada de ozônio e o efeito-estufa. Eu pensei comigo: deve haver no mínimo uns cinco mil professores universitários que sabem destas coisas de cor e salteado. Agora, a camada de ozônio e o efeito-estufa são questões que o Brasil não vai resolver, mas o que depende de nós é o gás que está poluindo São Paulo. As pessoas ficam tristes porque estão queimando a Amazônia e está muito certo que fiquem tristes, mas ninguém se incomoda com a miséria e o atraso que estão debaixo de seus olhos. Temos pena dos jacarés e não de 365 mil crianças que morrem por ano neste país.

ISTOÉ– Há quem diga que o sr. não está preparado para ser presidente.
Lula-
Eu acho que tem muita gente com muito mais capacidade do que eu. Não nego e não negarei, mas não vou deixar de ocupar meu espaço. Pela primeira vez, vou poder ser candidato com televisão à minha disposição pelo menos três minutos diários. Eu fui candidato em 82 e não tive televisão. Eu tenho dito para o pessoal do PT o seguinte: não se preocupem. Tem muita gente mais capaz do que eu, mas vou ocupar meu espaço tanto com o resultado eleitoral, bem mais com a quantidade de adubo que a gente está colocando essa sociedade. Quanto a mim, quero desmistificar a figura do candidato. As pessoas, quando escolhem um candidato, querem um misto de ginecologista, pediatra, otorrino, ortopedista, cientista nuclear, ecologista,artista etc. etc. Leio nos jornais que, segundo o Brizola, o povo está precisando de um Moisés, profeta e guia. Eu não estou preocupado em ser profeta ou guia.

ISTOÉ– Há quem diga que o maior problema do projeto do PT está em seu propósito de estatizar tudo, ou quase.
Lula-
Não é segredo: somos favoráveis a que educação, saúde, transporte e setores estratégicos, como o de energia, estejam nas mãos do Estado. Agora, o que nós temos de discutir dentro do PT, são os caminhos dessa intervenção. Será por decreto-lei, dizendo o seguinte “a partir do dia 15 de março de 1990 toda escola será pública”. Ai, eu pergunto: o Estado tem condições de dar resposta a isso? Ele está estruturado para tanto? Não. Penso que tenha de se estruturar primeiro. Cabe ao Estado aparelhar-se para que as pessoas não se sintam obrigadas a ir para a escola particular. Ou seja, o dia em que o Estado oferecer uma escola pública decente, você não vai mais precisar colocar seu filho em uma escola particular. E o que acontece, por exemplo, nos países da comunidade europeia. Aliás, já houve tempo em que também acontecia aqui: quando a escola pública é boa, o rico quer estudar nela. Basta ver as faculdades brasileiras. Já para os trabalhadores sobram às universidades noturnas, pagas.

ISTOÉ– Os seus filhos estudam em escolas públicas?
Lula— E
studam. Eu vou dizer para vocês,me ofereceram até bolsa de estudos para meus filhos para estudar em escola paga, mas eu sou contra. Eu sei que eu estou levando desvantagem, porque amanhã meu filho poderá até me cobrar porque o nível da escola pública não permite que dispute vaga na universidade em condições de igualdade, com quem estudou em escola particular. Mas que fazer? Prevaleceu o princípio. Em todo caso, o que disse sobre educação, vale também para a questão da saúde. Você não pode falar em estatização da saúde pura e simplesmente, se você não falar em melhorar as condições de atendimento. O Estado tem de dar um padrão decente, igual para todo mundo. Se, a partir daí, alguém tiver dinheiro e quiser pagar mais no hospital particular, que pague. Este também é o sistema de inúmero países capitalistas. O problema é que no Brasil o Estado foi sempre um péssimo administrador. Por exemplo: ainda não se viu uma estatal administrada de forma transparente, democrática. As nossas estatais são ineficientes. Salvo raras exceções.

ISTOÉ– Quanto ao socialismo do PT, não é possível que, à medida que o tempo passa, vá ficando, digamos assim, menos tradicionalista?Quando a escola pública é boa, o rico quer estudar nela. Mudou por exemplo o programa do Partido Comunista Italiano, que era um partido proletário e revolucionário e que hoje é um partido social-democrata.
Lula-
Eu sonharia que pudéssemos comparar o Brasil com a Itália do ponto de vista da qualidade de vida, do alto grau de liberdade daquele povo. Mas é tão primitiva nossa situação de distribuição de renda, que é complicado demais discutir qualquer coisa em comparação com a Europa. Do ponto de vista social, nós estamos, no mínimo, 50 anos atrasados. Um programa social democrático, por aqui, já é revolucionário.

ISTOÉ A Europa levou dois mil anos para chegar onde está hoje. Mas aqui as coisas podem assumir outro ritmo. O PT virou partido em dez anos.
Lula—
Certo, o Brasil pode andar depressa e é bem possível que, dentro de pouco tempo, o debate seja outro. Sabe qual é a minha vontade de viajar para a União Soviética‘? É porque eu quero conhecer de perto. Eu gostaria de passar bom tempo visitando os países socialistas. Porque eu não quero discutir o socialismo apenas do ponto de vista teórico. Não posso mais discutir na base do sonho. Por que, de repente, o Gorbachev pira a cabeça de todo mundo com a perestroika? Por que na China há mudanças? Será porque os governos estão virando capitalistas, traidores do socialismo? Será que é isso ou será que a realidade política e social obriga as pessoas a se afastarem das lições do livro?

ISTOÉ— O sr. já se imaginou entrando no Palácio da Alvorada juntamente com d. Marisa e a filharada?
Lula-
Primeiro, eu não sei se é necessário ir para lá.

ISTOÉ– Se não for para lá, terá de ser para algum lugar bem parecido.
Lula-
Acho que interessa mesmo é ter a consciência de que se trata de governar a oitava economia do mundo. Um PIB enorme num país marcado pelas suas maiores desigualdades sociais. Somos o quarto exportador de alimentos e o sexto em desnutrição. Eu acho que estou preparado, tenho esta consciência. Além disso, eu só posso comparar-me aos que me antecederam.

ISTOÉ– Por que os conservadores estão preocupados?
Lula-
Mas conservar o quê? A sociedade está precisando é de mudanças, e mudanças substanciais. O Brasil não pode terminar o século na bancarrota. É preciso que volte a adquirir esperança e perspectiva. Nós já vivemos melhor do que nós vivemos hoje. Em 1973, eu, torneiro-mecânico da Villares, pude comprar um TL. O TL era o carro do ano, em São Bernardo e no Brasil. Em 1988, com o salário de torneiro-mecânico, eu não compro a tampa de motor de um Fusquinha. Em 69, eu construí uma casa, nada de especial, quarto, sala e cozinha. No ano seguinte acrescentei um quarto. Em três anos, tive uma casa de verdade. Hoje, 20 anos pagando prestação do BNH, o cara não tem uma casa.

 

 O ódio do povo não equivale a alto nível de consciência política

 

ISTOÉ– O sr. diz que é difícil a comparação com países europeus. Mas concordaria com a ideia do atual secretariado do Partido Comunista Italiano, de que o tempo dos revoluções terminou?
Lula-
Tive uma conversa de uma hora e meia com Achille Occhetto, secretário do PCI, e não tenho dúvida de que, se eu fosse italiano, seria do Partido Comunista. Pela clareza, pela competência, pela capacidade. Agora, é outro mundo.

ISTOÉ– O PT é um partido revolucionário?
Lula-
A existência do PT no Brasil é um ato revolucionário. É revolucionário eleger, por exemplo, mais de 300 vereadores camponeses.

ISTOÉ– Eleição não é revolução.
Lula—
Uso a força da expressão. Acho que no próximo 15 de novembro o povo tem a clareza de fazer a revolução pelo voto. Agora, se os poderosos do Brasil não tiverem consciência da necessidade urgente de mudança, o que aconteceu na Venezuela pode ser fichinha.

ISTOÉ – O sr. gosta da ideia de quanta pior, melhor?
Lula-
Não gosto nem um pouco. Se gostasse não seria do PT e não seria candidato. Eu gosto é de eleição. E gosto da oportunidade que o povo tem de mostrar nas urnas que amadureceu. Mas que fique claro, eu não  confundo ódio com consciência. Eu acho que o povo brasileiro carrega ódio represado. Isso não significa ainda um alto nível de consciência política. O partido, qualquer partido, é importante se oferece orientação a setores desorientados.

ISTOÉ – As Pessoas teriam de votar na sua candidatura por que é de esquerda?
Lula-
Não é isso. E sobretudo porque pertenço a um partido político que tem um programa e coerência para cumprí-lo. O partido tem de ser o responsável, então o povo terá a quem cobrar.

ISTOÉ – O sr. acha que hoje no Brasil já é possível votar em partido e não no candidato?
Lula-
Não, eu acho que ainda se vota na pessoa. Mas a situação ideal é a outra. Na minha opinião, o Brasil só será lindamente democrático quando os partidos apresentarem listas e o povo não tiver de escolher o homem.

ISTOÉ – Mas isso é parlamentarismo.
Lula—
Eu sou parlamentarista. O parlamentarismo é a forma mais democrática de governo, é a forma que aproxima mais o povo do poder, ou o poder do povo. Por que eu votei contra o parlamentarismo na Constituinte? Primeiro, porque havia uma decisão partidária. Segundo, porque eu não podia votar no parlamentarismo apenas como recurso para neutralizar o Sarney ou para colocar o Ulysses de primeiro-ministro. Mas eu já disse a meu partido que sou parlamentarista e vou brigar para que o PT, em 93, apoie o parlamentarismo.

ISTOÉ – Parece que o sr. não tem dúvidas de que chega ao segundo turno da próxima eleição. Quem será então o adversário final?
Lula-
Eu preferia que fosse o Brizola, para que a disputa se desse no campo do lado progressista. Mas a gente não pode menosprezar o PMDB, principalmente se o candidato do PMDB for Orestes Quércia.

 

 O PSDB é uma sala de aula cheia de professores, falta é aluno 

 

ISTOÉ– E Jânio Quadros?
Lula-
Eu não tenho preocupação com Jânio Quadros, apesar de muita gente: dizer: “Cuidado, o velho é experiente.” Sinceramente, acho que a última do Jânio foi à eleição para a prefeitura mesmo, porque ele realmente não disse a que veio.

ISTOÉ– E Mário Covas?
Lula-
Eu brinco muito com os companheiros tucanos. O PSDB é uma sala de aula cheia de professores, mas sem alunos. O Mário Covas é uma pessoa da mais alta integridade moral e política, é um homem de palavra. Agora, em política não basta ser bom, é preciso ter um partido político atrás, e o Covas não tem. Acho difícil à campanha do Covas, a não ser que haja amplos setores de esquerda do PMDB dispostos a apoiá-lo.

ISTOÉ– O sr. gostaria de disputar com Leonel Brizola. Ele está criticando muito o PT, não é mesmo?
Lula-
Brizola está estrategicamente equivocado. A não ser que ele esteja convencido de que o PT vai ganhar o primeiro turno e que ele tem de disputar com o PT de saída. Em todo caso, pelo menos nesta primeira fase, nós não vamos hostilizar o Brizola. Nós vamos tentar primeiro ver qual é o quadro à direita. Definido, esse quadro, nós poderemos mergulhar no debate com os candidatos da direita para cogitar de Brizola somente depois.