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Lula concedeu esta entrevista à Istoé na semana seguinte às eleições presidenciais no 1º turno. Era final de novembro e naquele momento as negociações partidárias para conquistar apoios para o 2º turno estavam frenéticas. Lá, como cá, o PMDB tinha imensa importância não só na busca pelos votos, como também na composição da bancada parlamentar que garantiria a governabilidade do presidente da República. Após um primeiro turno sangrento, em que foi vítima de uma série de acusações que se mostrariam falaciosas pouco mais de uma década depois, Lula buscava nessa entrevista desmistificar a figura de comunista revolucionário criada por seus adversários. Prometeu não estatizar o país, negou que iria confiscar bens da classe média e rechaçou, de forma firme, que não imaginava implantar no Brasil um regime similar ao cubano. Além de Cuba, naqueles anos, o temor da sociedade brasileira era de que o Brasil se transformasse em um Nicarágua, o equivalente à Venezuela hoje no debate político.


Na manhã de terça-feira, 21, havia alguma tensão na casa do candidato Luís Inácio Lula da Silva, em São Bernardo (SP), sitiada pela imprensa escrita e televisada. Dona Marisa, mulher de Lula, não se sente muito à vontade com a curiosidade dos jornalistas. Ela é partidária da ideia “política, política, família à parte”. Mas a imprensa está lá, à espreita, de gravadores, máquinas e câmeras em punho.

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O candidato acabava de dar uma entrevista à revista Veja – de blusa verde. A fotógrafa que iria retratá-lo para esta entrevista propôs que mudasse a roupa, à espera de outras mudanças. Lula pediu que lhe trouxessem uma camisa, a qual veio vermelha. Ele achou que vermelho não é a cor mais adequada ao momento da sua campanha. Pediu que passassem outra, de cor neutra. Alguém foi até a cozinha negociar com Marisa. Voltou desolado. “Ela passou esta”, disse, com o tom de quem recomenda resignação. Lula vestiu a camisa vermelha em silêncio.

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ISTOÉ – Os empresários do Fórum Informal de Debates, à sombra da Fiesp, anunciam o seu apoio ao candidato Collor. Que acha disso?
Luiz Inácio Lula da Silva –
Primeiro, eu me pergunto se estes senhores representam o empresariado brasileiro. Creio mesmo que eles se mantém no poder porque a estrutura do movimento sindical é pelega. Se houvesse liberdade, autonomia sindical, teriam caído. Sei também que tem muitos empresários mais modernos, mais arejados. Empresários que acompanham o desenvolvimento do mundo e percebem os melhores caminhos para modernizar o Brasil.

ISTOÉ — Mas as Iideranças da Fiesp acham que o sr. é muito radical.
Lula-
Ocorre que quem está radicalizando, neste exato instante, são eles, com suas afirmações esdrúxulas, de que eu quero trazer para o Brasil o regime da Nicarágua, ou o regime de Cuba, ou que eu não creio em Deus, e por ai afora. Eles é que começam a radicalizar levantando mentiras, levantando infâmias, ou insinuações primárias como preferir. Na verdade esses empresários ainda não se habituaram a viver com o chamado setor moderno da classe operária, não se habituaram a entender que a greve é um produto da sociedade moderna, da democracia. Mas eu vou tirar proveito da ignorância, ou da hipocrisia, deles.

ISTOÉ– De que forma?
Lula-
Eles estão conferindo à eleição uma característica de luta de classe, que ela, por si só, não teria. Que exige a eleição em si? Que cada um dos candidatos apresente o projeto de sociedade que ele quer. Mas, na medida em que eles começam a mentir, estão acirrando os ânimos, acentuando as contradições, exibindo diferenças. Assim, contribuem para que os brasileiros ganhem consciência de classe.

ISTOÉ— Diante disso, o que o sr. pretende fazer?
Lula—
Para enfrentar o radicalismo deles, organizo para o segundo turno a receita do bom senso. Se meu adversário fala do seu passado, ou dos compromissos assumidos com quem o apoia nesta campanha, vai ter de mentir se quiser demonstrar que está a favor da maioria. Quanto a mim, tenho apenas de tentar contar a verdade. Quando eu conto o meu passado político, eu conto com orgulho, quando eles contam, são obrigados a mentir, porque o passado político deles deixa bastante a desejar em matéria de defesa das causas populares. Quanto a nós, vamos ter de dizer claramente, sem nenhum radicalismo mas com toda a força possível, que é preciso haver uma nova mentalidade empresarial neste pais, que é preciso haver distribuição de renda, que não podemos continuar convivendo com o povo mendigando para que a minoria possa fazer proselitismo político de quatro em quatro anos. Eu acho que essa verdade vai estar na ordem do dia, e que vai permitir a vitória da gente. E gostaria de poder reeditar a luta do “tostão contra o milhão”, levada avante em 53 pelo Jânio Quadros. Foi, na minha opinião, o maior slogan que alguém criou numa campanha. Hoje não temos o tostão, embora o salário tenha piorado em relação à época do tostão. Mas a campanha vai me permitir utilizar uma comparação da vida e do comportamento político de cada um.

ISTOÉ- Mas os empresários, sobretudo os grandes, estarão com quem?
Lula-
Vou ter do meu lado muitos empresários, tenho certeza. Aliás, estou propondo à direção do partido que convoque urgentemente uma reunião com empresários, para discutir o nosso projeto de governo.

ISTOÉ- O candidato Collor é, na sua opinião, igualzinho a outros, ou existe nele alguma novidade?
Lula-
Eu acho que tem muitos empresários se agarrando no Collor com medo do Lula, ou contra o Lula. Esta poderia ser a novidade. Deste ponto de vista, o Collor não é o candidato ideal de certos setores do empresariado.

ISTOÉ- Desconfiam dele?
Lula-
Não sei. Quando a gente falava em corrupção, nós éramos radicais. Quando é um deles que fala,é bonito, é moralização do Estado. Às vezes, eu fico em dúvida: será que tudo não passa de um jogo de cartas marcadas? Será que o Collor não teria um pacto com essa gente? Eles os apoiam, mas ele revida agredindo-os. Eu me lembro de alguns dirigentes sindicais da década de 70 que falavam mal do governo nas assembleias e depois ligavam para o governo: “Nós temos que falar mal senão a oposição nos come”.

ISTOÉ– E os ataques de Collor a Sarney?
Lula–
Ninguém ajudou mais o Collor que o Sarney. Mas eu concordo: Collor não faz parte desse círculo político antigo. Ele conseguiu escapar disso na questão dos marajás. Em todo caso, criou um sentimento na sociedade que nós temos plenas condições de desmistificar nesse segundo turno. Vocês vão perceber que ao longo desta campanha não falarei mal do meu adversário, no plano pessoal, em nenhum momento. Vou tentar levar a sociedade a descobrir as contradições entre o seu bom-mocismo e a sua vida política.

ISTOÉ- Um argumento apresentado contra a sua candidatura reza que a perestroika e, em geral, a abertura no Leste europeu mostram que o PT está na contramão da História.
Lula-
Todo mundo de bom senso tem de parabenizar Gorbachev assim como todo mundo de bom senso não poderia concordar com o Muro de Berlim. O problema é que quem aparece como o fazedor de História não é quem faz a História, mas quem a conta, normalmente, a classe dominante. Agora, reparem. Quem defendia o sindicato Solidariedade, de Lech Walesa, em 79/80, éramos nós. Muita gente achava, então, que Walesa era agente da CIA. Até achavam isso de mim. Agora, o que me espanta é que os comportamentos dos donos do poder por aqui não mudam. Mas o Brasil não pode nesta virada de século continuar pensando como na virada do século passado. Não é possível. Um país não será moderno apenas porque moderniza o seu parque industrial. Precisamos é modernizar as cabeças das pessoas.

ISTOÉ- Quer dizer, o papo é sempre o mesmo?
Lula—
Estão é atrás dos mesmos inimigos, ou seja, curtem os mesmos medos. O medo do comunismo que eles tinham
em 35, continuam tendo em 89. Não são capazes de entender que o Gorbachev, o Solidariedade,os políticos que estão conduzindo o processo na Hungria, na Bulgária, que talvez vão acabar conduzindo o processo até na Romênia, estes hoje são o progresso, a esquerda. Quem hoje briga pela modernização contra o emperramento da máquina, a favor de mudanças substanciais, este é o pessoal do progresso, da esquerda. E é importante saber que lá fora a discussão esquerda-direita se dá num patamar diferente do daqui. No Brasil nós ainda estamos lutando por um prato de comida, por um primeiro emprego, pelo primeiro sapato. Eu não sei como alguém pode ser conservador neste país. Conservar o quê? Alguém ser conservador na França eu entendo, ser conservador na Alemanha eu entendo, mas ser conservador no Brasil é ser fariseu porque é conservar a miséria.

ISTOÉ— O sr. falou de mentiras a seu respeito. Vejamos, estão dizendo que o PT no poder vai precipitar o confronto entre trabalho e capital. Verdade ou mentira?
Lula —
É uma cretinice. É claro que nesta campanha eu me coloco como defensor dos trabalhadores. Neste país, 80% da população têm renda familiar abaixo de dois salários mínimos. São dados do IBGE, não do PT. Sou a favor do resgate deste povo maltratado, e a minha disputa entre capital e trabalho é esta. É que eu quero levar o meu adversário a assumir a sua origem de classe, quer dizer, sou generoso: não quero que ele seja um traidor da classe dele. Eu disse numa entrevista a IstoÉ Senhor em março passado, e vou repetir. A lógica deles não é a minha lógica. Eles têm o capital na mão, oferecem emprego, pagam salários. Donde, geram consumo, que gera mais emprego, que gera mais salário etc. etc. Teria de ser assim, mas eles não estão cumprindo a regra básica do sistema em que dizem acreditar. Por quê? Porque muitos entre eles ganham e não reaplicam, colocam na sua conta bancária, compram dólar, ouro, e por aí. Especulam no lugar de produzir. Contra si próprios, contra os interesses do Pais e de um capitalismo moderno.


ISTOÉ– Vamos insistir nesta área das definições – e das mentiras a seu respeito. Nicarágua?
Lula E inconcebível alguém trazer para o Brasil o regime da Nicarágua, porque a coitada da Nicarágua está à procura do seu próprio regime. A minha defesa da Nicarágua eu faço até o dia da minha morte, é a defesa intransigente da autodeterminação dos povos.

ISTOÉ– Cuba.
Lula A mesma coisa, a mesma coisa. Há um aspecto que eu enalteço em Cuba. O Brasil teve um golpe militar em 64 e Cuba teve uma revolução em 59. Cuba conseguiu ao menos resolver o problema da educação e da saúde e no Brasil não resolvemos, e até pioramos a situação. Cresceu o nosso parque industrial, mas a riqueza foi mal distribuída.

ISTOÉ– Tudo bem, mas o pessoal insiste: se o Lula ganha, transforma o Brasil numa Nicarágua.
Lula Eu não consigo imaginar que alguém de bom senso possa acreditar nessas bobagens. Ou não conhece o Brasil, ou não conhece a Nicarágua, porque não há como, geograficamente, economicamente, politicamente, comparar Brasil e Nicarágua. Quando você pensa no Brasil, tem de pensar num país-continente, destinado a ser uma nação decisiva, apesar dos seus atrasos e defasagens atuais. Você compara o Brasil à China, aos Estados Unidos, ao Canadá, à Índia, à Europa. Às vezes os tempos são diversos, mas o porte é o mesmo.

ISTOÉ– E se Lula ganha, estatiza tudo?
Lula  É outra imbecilidade. Veja, eu venho fazendo questão de brigar dentro da Frente Brasil Popular. Primeiro, nós precisamos moralizar o que está estatizado. Eu sempre defendi que os setores estratégicos da economia devam estar nas mãos do Estado, e que todo dinheiro do Estado deva ser utilizado sempre em benefício da maioria, e não em benefício de grandes grupos econômicos, como acontece hoje. É por isso que nós queremos desprivatizar o Estado para que o dinheiro do Estado seja aplicado em proveito da sociedade. No mais, eu sou favorável a manter todas as estatais estratégicas. Acho também que a Educação tem de estar nas mãos do Estado, e a Saúde também. Mas quando falo que a Educação tem de estar nas mãos do Estado, que quero dizer? Não é que amanhã a gente vai fechar todas as escolas particulares. Digo apenas que o Estado precisa garantir uma boa educação para a população. Agora, quem quiser colocar seu na escola particular, que coloque. Mas a escola pública tem de ser de primeiríssima qualidade. A saúde pública tem de ser de primeiríssima qualidade. Na Itália, na França, na Alemanha, alguém só vai no médico particular se quiser gastar dinheiro de sobra. É isso que nós queremos, coisa de país democrático ocidental, não é mesmo? E quero deixar bem claro que não critico, e jamais critiquei, quem coloca o filho na escola paga, porque eu acho que é justo e legítimo o pai procurar o melhor para o filho. Reafirmo, porém, que o Estado não está cumprindo o seu papel.

ISTOÉ— Mas há quem ache que o PT vai encampar bens privados a torto e direito.
Lula Sim, eu sei. Quem tiver dois carros vai perder um. Ora, a gente não sonha em nivelar por baixo. Que é ser classe média? Morar decentemente, ter carro, ir à praia no fim de semana, ao restaurante no domingo? Ora, isso deve ser um direito elementar de todas as pessoas.

ISTOÉ– Internacionalização da economia, capital multinacional.
Lula  Queira Deus que venha, e que venha muito. A internacionalização da economia é um fato, assim como é fato que o Brasil depende de tecnologias elementares, porque é um país que não investe em pesquisa. Seria bom para todos se revertêssemos este quadro em proveito de nossa independência, econômica e política, sem com isso pretendermos ser uma ilha, uma economia fechada, autárquica, como pretendia o fascismo. E sobre o capital estrangeiro, eu tenho a dizer que ele trata melhor o trabalhador brasileiro do que o capital nacional, o que é, de certa forma, vergonhoso. Se você for perguntar para o trabalhador se ele quer trabalhar na Volkswagen ou numa empresa nacional, ele vai preferir trabalhar na Volkswagen. Lá as condições são melhores.

ISTOÉ– Reservas de mercado.
Lula  É para gente que quer agir sério. Fazer a reserva para permitir que meia dúzia de grupos econômicos tome conta, este é, no mínimo, um equívoco. Agora, eu tenho uma crítica a respeito deste assunto: o mesmo setor que é contra a reserva da informática no Brasil é favorável à reserva da indústria automobilística. Eu não vejo por que deva ficar a Autolatina mandando em 80% do mercado.

ISTOÉ– Dívida externa.
Lula As conversas que tive no Exterior em março passado ainda continuam sendo o norte da minha campanha. Acho que em relação à divida externa, é necessária uma forte política para que se discuta não somente a solução da atual dívida, mas a reestruturação da política internacional. A situação do Brasil é muito peculiar, porque quem defende o pagamento pensa em receber dinheiro novo. Nós estamos pagando e não está vindo dinheiro novo. Então, suspender esse pagamento não é bravata, é uma opção de vida ou morte. O desenvolvimento do País passa pela definição de uma política internacional mais arrojada de procurar novos parceiros, no sentido de estabelecer a discussão concreta de uma nova ordem econômica internacional. Sem isso, a nossa chance, a chance do Terceiro Mundo, fica a zero. Nós vamos virar o século numa situação muito engraçada. Nós vamos virar o século com a economia desenvolvida reorganizando-se, com alguns avanços incríveis. O projeto Europa 92 elimina as fronteiras, um português pode montar uma fábrica na Alemanha -, e nós estamos ilhados aqui. É lógico que eu tenho consciência de que a briga é política. Qual é a primeira medida que nós podemos tomar? É tentar transformar a discussão da divida externa numa discussão política e em uma discussão econômica. E, aí, não só tentaremos conversar com os governos, mas também com os partidos políticos e os grandes movimentos sindicais. Acho que contamos nessas áreas com apoios certos.

ISTOÉ– Dizem que Lula romperia com o FMI.
Lula  Não é isso. Mas repare. Quando o Lula fala de suspender o pagamento, as pessoas dizem que é radicalismo. Quando vem aquele economista que resolveu o problema da Bolívia, Jeffrey Sachs, e diz que não pode pagar, está tudo bem, os empresários se encantam com sua sabedoria.

ISTOÉ— Reforma agrária.
Lula Há gente que tem dois alqueires e acha que vamos fazer reforma agrária na terra deles. Mas a reforma agrária é a condição básica para a gente resolver vários problemas que transcendem a produção agrícola. Conseguindo evitar o exôdo rural, a reforma agrária consegue resolver parte do nosso problema habitacional, parte do problema da urbanização desenfreada, parte do problema de alimentação. Por ai passa também o combate à mortalidade infantil, e até a melhoria da situação dos trabalhadores das cidades, porque na porta da Volkswagen não vai surgir diariamente um exército de desempregados. E acho que a reforma agrária pode ser feita sem qualquer trauma maior. É fazer um levantamento em cada município, em cada Estado, das terras devolutas, das terras improdutivas, tentar estabelecer uma política de assentamento, tendo como assentamento um conceito ainda incipiente, se a solução está em dar terra para particular, ou um sistema cooperativo. Enfim, quando a gente fala em reforma agrária, também vale discutir em geral a política agrícola. Médios e pequenos proprietários estão órfãos de pai e mãe, e eu imagino a oportunidade de uma política de crédito especial para eles, na qual possam pagar em produto, para não ficar na dependência da meteorologia e dos riscos da hipoteca. Eu penso que o Banco do Brasil pode emprestar para um pequeno proprietário uma quantia equivalente, em dinheiro, a mil sacas de café ou mil sacas de milho.

ISTOÉ– Há mentiras, há fantasias. A que categoria pertence a seguinte frase: “Se o Lula ganhar, os militares vem aí!"
Lula Há muita invenção a respeito dos militares. O papal dos militares está definido na Constituição. Acho que está até de forma excessiva. Acho que os militares têm de cumprir o seu papel constitucional, têm de acatar o presidente da República como chefe supremo das Forças Armadas. Não vamos batalhar para tentar criar condições de ter um ministro da Defesa, até porque não é democrático você ter seis ministros militares numa mesa de reunião do Gabinete. Parece mais uma parada de 7 de Setembro do que uma reunião de ministério. Agora, frases como essas não ligam muito para a lei, têm sobretudo raízes culturais. Quanto a mim, faço numa distinção entre o respeito que a gente tem de ter pelas Forças Armadas, como instituição necessária, e o militarismo posto em prática depois de 64. Nos países da Europa não se verifica esta presença militar tão forte aqui e em toda a América Latina. Aqui, militares palpitam na área que teria de ser de trânsito exclusivo da sociedade civil. Em todo caso, eu tenho consciência de que é preciso trabalhar essa com cuidado. Acho que o militar gosta também de voz ativa, e vamos ter voz ativa, podem estar certos disso.

ISTOÉ— Socialismo.
Lula Eu sou torneiro-mecânico, mesmo assim, não excluo que os cientistas políticos se juntem, nesta virada de século, para rediscutir tudo o que se discutiu no inicio do século. Algo poderoso aconteceu neste século, a Revolução de 1917. Mexeu com o mundo, dividiu, durante quase todo o século, a humanidade em dois blocos. E agora a própria União Soviética toma a iniciativa de redimensionar seu próprio projeto, porque percebeu que não estava andando como deveria. Então eu acho que a questão do socialismo tem de ser rediscutida por socialistas e não-socialistas, assim como tem de ser rediscutido o capitalismo. Eu me considero socialista, tenho um ideal socialista na cabeça, mas não tenho dúvida de que o socialismo só tem lógica se for democrático, só tem lógica se houver o pluripartidarismo, só tem lógica se proporcionar autonomia sindical. Sem esses requisitos não é socialismo, é ditadura. À direita e à esquerda. Isso é o que precisamos discutir, sem que ninguém pose de dono da verdade. Uma coisa está clara: não é possível mais conviver numa sociedade em que o Lula tem cinco pãezinhos para comer todo dia e outras pessoas passam cinco dias sem comer nenhum.


ISTOÉ– Como o sr. acha que dá pra ganhar? Com quais votos, além daqueles de 15 de novembro passado?
Lula Eu vou tentar abocanhar muito voto do Collor. Duvido que ele abocanhe o meu, mas vou abocanhar muito voto dele. Confio também no voto brizolista. Brizola provou que é uma liderança respeitada, principalmente nos dois Estados que ele governou. Ele tem votos cativos, e acho que arrasta mais de 80% desses votos para o lado que escolher. Talvez o eleitor do PSDB seja um pouco mais difícil, porque é eleitor mais de classe média. Mesmo assim, acredito que uma parcela significativa vem com a gente. Só para vocês terem uma ideia, no comitê do PT em São Paulo têm aparecido dezenas de carros de eleitores do Mário Covas comprando adesivo e colocando ao lado do adesivo dele.

ISTOÉ– E o PMDB?
Lula Setores importantes do PMDB vêm para o lado da gente também.

ISTOÉ– Mas o sr. João Amazonas, do PC do B, diz peremptoriamente: “Ulysses não”.
Lula E muito difícil você dizer que não quer fulano ou beltrano. Eu acho que nós temos de estabelecer um programa mínimo e, quem quiser aderir, adere a esse programa. Eu me recuso a dizer quero este ou aquele. Mas quero mexer com o lado pessoal de cada um, não quero julgar ou prejulgar ninguém. Basta estabelecer um teto, para que esta aliança não vire a aliança Aliança Democrática.

ISTOÉ— Mas o sr. Amazonas diz . . .
Lula …E eu digo que gosto muito do Ulysses. Acho que Ulysses se perdeu ao se preocupar se era mais oposição ou mais aliado do Sarney. Acho que Ulysses não soube trabalhar a televisão e passou 60 dias tentando negar o Sarney, o que foi um equívoco. Mas também acho que, se desse uma declaração de que me apoia, poderia me ajudar. Quanto ao PMDB como partido, se Ulysses não conseguiu uni-lo, quanto mais o Lula.

ISTOÉ– Qual a sua perspectiva em relação aos debates?
Lula O debate será muito importante. Espero que sejam menos medíocres do que outros, em que não houve uma única pergunta sobre reforma agrária, distribuição de renda, energia, estatização. Era só pergunta de intriga. Valeriam debates em que os perguntadores fossem os melhores jornalistas do País e fizessem perguntas diretas e profundas, para pôr em xeque o candidato, suas ideias e seus propósitos. Perguntas para valer, com direito a réplica do perguntador, para apertar nas questões centrais. Assim é que deveria ser.

ISTOÉ- Há uma questão que talvez não esteja sendo colocada com a necessária precisão. E a questão da governabilidade, que se propõe invariavelmente depois da posse.
Lula A aliança das forças progressistas é importante. Eu pretendo governar com um governo de coalizão. Falo antecipadamente, sem discutir com a Frente Brasil Popular, mas está claro que, para moralizar o Pais, estabelecer uma política dc distribuição de renda, fazer uma reforma administrativa, precisamos do apoio de outras forças políticas e da parte organizada da sociedade. Dai por que eu acho que Mário Covas é importante, Brizola é importante, Roberto Freire é importante, a esquerda do PMDB é importante. Não poderíamos dispensar, por exemplo, a contribuição de figuras como Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manuel Cardoso de Mello. Não são do PT, mas são ótimos. Eu não estou partilhando cargos, eu gostaria é de partilhar responsabilidades.

ISTOÉ- Com isso o sr. teria condições de compor uma bancada parlamentar que, pelo menos no primeiro ano, o ajudaria a governar?
Lula É isso. Com o apoio da esquerda do PMDB, de setores importantes do PSDB, do PDT, você monta uma bancada parlamentar da mais alta respeitabilidade.

ISTOÉ- Sem dúvida, mas o tempo é curto, não?
Lula  É curto, mas também o tempo deles é curto. Porque o presidente toma posse em março e o Congresso se renova em novembro. Nesse tempo, eles vão ficar mais progressistas. 


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