Contos de fadas não foram feitos para crianças. Circulavam pelas aldeias medievais levados por ciganos e perpetuados na medida em que, como uma novela de sucesso, traziam à praça problemas comuns (e suas soluções) à vida das pessoas que viviam com os filhos a tiracolo – quase sempre, portanto, mulheres. “A Bela e a Fera”, filme que estreia esta semana, leva para as telas problemas que, diferentemente de Branca de Neve, Bela Adormecida e Chapeuzinho Vermelho, não ficam nas questões femininas de todas as princesas dos livros: crescer, superar a mãe, achar um marido e substituir as bonecas por filhos. A começar pelo fato de que a heroína do título não é, pelo menos não nasce, como todas as outras, uma princesa. Bela, que a Disney transformou na personagem mais intelectualizada já feita para meninas, sai da burguesia para conquistar o amor de um príncipe amaldiçoado que queria matar seu pai. É o primeiro papel importante de Léa Seydoux depois do polêmico “Azul É a Cor Mais Quente”, que lhe valeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes do ano passado.

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PROTAGONISTA
Léa Seydoux como Bela: primeiro papel importante depois
do polêmico "Azul É a Cor Mais Quente"

A personagem-narradora do filme de Christophe Gans é filha favorita de um comerciante que enriquece e perde tudo num naufrágio. Ao contrário das irmãs, se encontra na nova vida simples da família, afastadados vícios, perigos e futilidades da cidade, e pede ao pai uma rosa, que ele rouba inadvertidamente do último reduto de beleza da propriedade do nobre transformado em Fera, personagem de um irreconhecível Vincent Cassel. E é desse ponto que a história mais importante começa: a saga do monstro, do homem que tem sua selvageria revelada na aparência horrível, punição por insistir nos maus hábitos da caçada em companhia de amigos fanfarrões, em vez de passar o dia na companhia da esposa grávida.

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DOMESTICADO
Vincent Cassel como a Fera: de caçador obstinado a jardineiro sorridente,
para recuperar a bela aparência e o posto de marido

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“Bela representa a mulher que não consegue quebrar o vínculo com a figura paterna para crescer. Então se envolve com homens insensíveis e até violentos, justificando assim seu desejo íntimo de eterno retorno à casa paterna”, explica Denise Ramos, professora titular de psicologia clínica da PUC-SP. Segundo ela, histórias que atravessam o tempo sem ter seu núcleo alterado falam de padrões de comportamento comuns a toda humanidade, os chamados arquétipos. No caso da Fera, estamos diante do modelo de homem que provê e cuida, mas não permite que a mulher conheça sua intimidade, mantendo-se distante, insensível e chegando a ser violento.

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BEM CERCADA
Enquanto as irmãs da heroína tentam de tudo para reaver as regalias
da vida abastada, os irmãos roubam e brigam

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A Bela, por sua vez, é a menina que continua precisando da aprovação e do reconhecimento paternos mesmo na vida adulta. Nos nossos dias, são aquelas mulheres que progridem no trabalho não por ambição genuína, mas movidas pelo desejo do reconhecimento do chefe, do diretor, do patrão, que são reproduções da figura do pai. Bela é aquela abnegada, que precisa agradar o tempo todo e quase sempre consegue, mas nunca está feliz. “Tenho muitas mulheres no consultório que tomaram essa trilha e perderam, no caminho, o contato com os próprios desejos”, conta Denise. “Mas seus maridos, os ‘feras’, esses não colocam o pé numa sessão de análise. No filme, a Fera é humilhada, se vê obrigada a baixar a guarda e entender o sofrimento que até então causava nos outros. A verdade é que faltam homens com H maiúsculo.”

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O diretor contou no lançamento que resgatou a primeira versão da história, publicada por Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve em 1740, duas décadas antes da versão mais amena, que originou a animação da Disney e o longa-metragem de Jean Cocteau de 1946, uma referência clara de Christophe Gans na caracterização impressionante de Vincent Cassel. O nobre e a burguesa se apaixonam. “A união de um casal continua sendo o grande objetivo dos contos de fadas, mesmo na sua atualização nos cinemas, porque esse ainda é o grande desejo das pessoas entre 20 e 40 anos”, diz a psicanalista. E então, objetivo cumprido, Bela se realiza contando para os filhos a aventura que foi salvar aquele animal de seus piores instintos. Enquanto o antigo caçador, de barba feita, cuida, como um redimido animal castrado, da poda das rosas do jardim que agora qualquer um pode colher.

Fotos: Divulgação; Film Frame/Disney 2014