HISTÓRIAS MESTIÇAS/Instituto Tomie Ohtake, SP/ até 5/10

Há 16 anos, quando o curador Paulo Herkenhoff decidiu trabalhar com o conceito da antropofagia, a Bienal de São Paulo produziu uma de suas mais importantes edições. Entre outros feitos, a exposição se tornou notória por estabelecer relações entre a história da arte brasileira e a mundial, conquistando o respeito da comunidade internacional. Ao embaralhar períodos e estilos e operar segundo o princípio da “contaminação” entre eles – aproximando, por exemplo, a escultura contemporânea de Tunga à pintura europeia do século 16 –, Herkenhoff desafiou a história institucionalizada. A “Bienal da Antropofagia” instaurou um pensamento que, segundo o curador, não se esgotaria ali. O princípio da contaminação ecoa desde então em muitos projetos. Mas nenhum deles havia tocado a questão de forma tão vigorosa e contundente quanto a exposição “Histórias Mestiças”, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake.

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OLHAR DE DENTRO
"A Primeira Missa" (2014), de Luiz Zerbini, faz releitura da história

A exposição é resultado de dois anos de pesquisas de Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz. Pela maturidade do projeto, porém, entende-se que a pesquisa de ambos é muito anterior. Pedrosa foi curador assistente de Herkenhoff e, portanto, já carregava a semente da mestiçagem. "A experiência em trabalhar na 24a Bienal de São Paulo certamente me permitiu, mais de 15 anos depois, refletir e desdobrar algumas experiência e conhecimentos que adquiri naquele processo. "Histórias mestiças" são histórias antropofágicas, e há um interesse em repotencializar a antropofagia, enquanto um projeto incompleto, através de uma recanibalização de matrizes africanas e ameríndias, algo que não existia na 24a Bienal de São Paulo", diz Pedrosa. "Digamos que o conceito é o mesmo, mas utilizado de modo muito diverso. Trata-se não apenas de traçar correspondência e diálogos, mas subverter um ordenamento histórico ortodoxo, conservador e eurocêntrico, e aí está a dimensão política de "Histórias mestiças’".

A historiadora Lilia Schwarcz, por sua vez, havia recontado a história do Brasil pelo viés da diversidade étnica pintada na obra de Adriana Varejão, em livro lançado em maio. Mas seu envolvimento com as raízes da miscigenação no Brasil foi fundado em sua pesquisa acadêmica. O fato é que o entrosamento entre Schwarcz e Pedrosa produziu um retrato surpreendente dos atravessamentos da cultura brasileira.

A mostra reúne 400 obras, produzidas desde as terras de Pindorama até o ano de 2014, feitas especialmente para a exposição, caso da pintura “A Primeira Missa”, de Luiz Zerbini. Apesar do preciosismo de cada uma das peças selecionadas, o que fica não é tanto seu valor e significado per se, mas a narrativa produzida por sua associação a outras obras. Cada parede, um discurso. Cada sala, um texto escrito seguindo relações sempre conceituais, nunca cronológicas.

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VISÃO DE FORA
"African Man", pintura de Albert Eckhout do século 17

A narrativa se inicia na sala “Trilhas e Mapas”, onde um mapa de 1565 (quando o Norte do país era “terra non descoperta”) é ladeado pelo “Contingente Yanomami” (2003), de Varejão, por plantas de quilombos e planos de navios negreiros. Na sala “Grafismos e Tramas”, tecidos caiapós e desenhos corporais do Pará dialogam com fotografia de Ivan Cardoso (1979) documentando moradores da Mangueira vestindo Parangolés de Hélio Oiticica. Na sala “Encontros e Desencontros”, a narrativa das vizinhanças é acentuada pelo alinhamento de três séries sobre processos civilizatórios aferidos contra as populações indígenas em tempos distintos, entre elas a série “Marcados” (1974), de Claudia Andujar, sobre a vacinação de tribos.

É claro que há lacunas. No núcleo “Ritos”, sente-se a ausência da obra de Regina Vater sobre as cosmogonias amazônicas. Mas uma exposição como essa deve ser lida como um livro aberto, que não se esgota em 400 obras e se oferece como uma força centrífuga, produzindo uma sonoridade em expansão.

Fotos: Divulgação