Aos 65 anos, Ricardo Galeano era um bem apessoado paraguaio nascido na cidade de Dr. Francia. Amistoso, costumava cumprimentar os vizinhos que moravam nos arredores de sua imponente residência – na rua Guido Spano, 1.976, no bairro de San Cristóbal, em Assunção – sempre que saía para caminhar ou passear com os filhos gêmeos, um menino e uma menina de 3 anos. Ele e a esposa, que contavam com os serviços de babá, empregada e chofer, frequentavam, nos finais de semana, o UvaTerra, um intimista e bem avaliado wine bar e restaurante na esquina da moradia do casal. Ricardo pagava R$ 11,3 mil pelo aluguel da mansão de dois andares no bairro de classe média alta, contribuía com R$ 500 mensais para o pagamento do salário do vigia, cuja guarita ficava em seu amplo jardim, e ostentava na garagem dois carros ano 2012: uma Mercedes E350, avaliada em R$ 135 mil, e um Kia Carnival, preço médio de R$ 110 mil. Costumava usá-los para levar os filhos à escola, a quatro quadras da casa onde morava.

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COVARDIA
Preso na capital paraguaia, o estuprador condenado a 278 anos de prisão
disse ter fugido do Brasil por indicação da esposa, mãe de seus dois filhos gêmeos

Foi atrás dessa pacata rotina que o suposto paraguaio escondeu o seu passado macabro no Brasil. Ricardo Galeano era o disfarce do ex-médico Roger Abdelmassih, estuprador em série condenado a 278 anos de prisão em 2010 por violentar sexualmente 37 mulheres em sua badalada clínica de reprodução humana, em São Paulo. Foragido desde 2011, Abdelmassih escolheu o Paraguai para fugir da Justiça, exatamente como fez nos anos 60 outro médico notório pela crueldade, o nazista Josef Mengele (1911-1979), o Anjo da Morte, que manipulou geneticamente cerca de 1.500 gêmeos nos campos de concentrações alemães para criar a raça “pura”, ariana, pretendida por Adolf Hitler (leia na pág. 61). Mengele morreu no Brasil escapando de um julgamento pelos experimentos praticados por ele em seres humanos. Capturado na terça-feira 19 por policiais da Secretaria Nacional Anti Drogas do Paraguai, em conjunto com a Polícia Federal brasileira, quando buscava os filhos na escola, a versão brasileira do monstro de Auschwitz – Abdelmassih se autodenominava Deus na terra às pacientes que o procuravam para realizar o sonho de ser mãe e não tinha escrúpulos ao manipular material genetico – não deverá ter a mesma sorte.

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A Justiça não se esgotou assim que o médico-monstro, cuja idade real é 70 anos, foi trancafiado, no dia seguinte à captura, no presídio paulista de Tremembé, onde ele já havia ficado detido quatro meses antes de conseguir um habeas corpus e ser solto em 2010. Sua prisão é apenas o começo de novas investigações que podem apontar para outros crimes e atrocidades. Na quarta-feira 20, cinco vítimas do estuprador do jaleco branco foram até o aeroporto de Congonhas, em São Paulo, onde ele desembarcou vindo do Paraguai, para comemorar o seu retorno ao cumprimento da pena. As mulheres, que fazem parte de um grupo que contribuiu com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e a Polícia Federal com a captura de seu algoz, estão prestes a formalizar juridicamente a criação da Associação de Vítimas de Roger Abdelmassih. Elas pretendem, concluída essa etapa, condenar o ex-médico por crimes contra a humanidade na Organização das Nações Unidas (ONU). “O Roger provavelmente colocava em outras mulheres os embriões que nós produzimos e não eram utilizados na nossa fertilização. Comercializava esse material genético”, diz a artista plástica Silvia Franco, 43 anos, estuprada enquanto sedada por Abdelmassih em 1997. “Eu produzi 12 óvulos. Quatro foram fertilizados. E os outros onde foram parar? Ele usava a inteligência que tinha para o mal”, afirma a farmacêutica Nelma Luz, 50 anos. Ela deu à luz Guilherme, que nasceu com síndrome de Edward e faleceu com 86 dias de vida. O ex-médico, de acordo com ela, se recusou a realizar o PGD, exame feito em uma célula retirada do embrião que aponta a existência de doenças genéticas.

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Abdelmassih terá, agora, de responder a outros 26 casos de estupro que constam em um inquérito na 1ª Delegacia de Defesa da Mulher paulista. Com o processo à sua frente, a delegada responsável pelo caso, Celi Paulino Carlota, comemorou a captura. “Quero ouvi-lo, agora, antes de devolver o inquérito para o Fórum”, afirma. As histórias coletadas por ela, além de relatos de violência sexual, apontam para crimes supostamente praticados pelo ex-médico contra a Lei de Biossegurança, como a comercialização indevida de óvulos e a manipulação genética de embriões. A farmacêutica Nelma e outras três depoentes relataram ter sofrido problemas durante a gestação. “Por telefone, dois casais me disseram que, ao fazer o DNA, descobriram não ser pais dos filhos gerados com o auxílio da clínica”, diz a delegada, que vai mais longe. “Como o Roger estuprava pacientes, não é improvável que possam existir filhos dele por aí, apesar de não ter tido, até agora, nenhum relato disso.” Além da ação na ONU contra o médico-monstro, o grupo de vítimas pretende criar um banco de dados genético das ex-pacientes. Já estão, inclusive, em busca de um geneticista. “Não queremos tirar filhos de nenhuma família constituída, mas esse banco poderia ser útil caso eles queiram saber a origem deles. E também nosso material genético ajudaria caso alguém precise do nosso sangue”, diz a estilista Vanúzia Leite Lopes, 54 anos.

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O grupo de vítimas foi decisivo na captura do ex-médico. Pela internet, as mulheres entraram em contato com moradores de Avaré e Jaboticabal, cidades no interior de São Paulo, onde, respectivamente, o criminoso possui uma fazenda e moram familiares de sua esposa, a ex-procuradora da República Larissa Sacco, 36 anos. Com essas pessoas, as vítimas conseguiram documentos como conversas de e-mail, boletos de transferência bancária e contas de telefone no nome de Abdelmassih, de parentes e empresas supostamente ligadas a ele. “Postamos mensagens em páginas do Facebook de qualquer um de Jaboticabal e Avaré, até salão de beleza e farmácia. Falávamos que ele era foragido e pedíamos que denunciassem. Aí começamos a receber ligações”, afirma a dona de casa Helena Leardini, que também faz parte do grupo. Ela e as amigas gastavam horas de seus dias verificando as informações que chegavam e as repassavam para uma equipe de investigadores da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, com quem conversavam várias vezes por semana.

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As informações foram compartilhadas com o Ministério Público em maio deste ano. No mesmo mês, o órgão realizou uma operação na fazenda de Avaré e localizou documentos, fotos e números de telefones que apontaram que o estuprador estaria vivendo na capital paraguaia. O material encontrado indicou que pessoas próximas a Abdelmassih e sua mulher – familiares, amigos e funcionários – atuavam numa suposta rede de lavagem de dinheiro construída para financiar a família no Exterior. Monitorando os envolvidos por meio de grampos telefônicos e investigações in loco, as autoridades descobriram que o foragido estava em Assunção. A partir dessa fase, entrou em cena a Polícia Federal, que no país vizinho agiu em conjunto com a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) do Paraguai para cravar a localização exata do foragido.

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A polícia sabia que o criminoso colocaria seus filhos numa escola bilíngue e provavelmente escolheria uma das instituições mais caras da cidade, de acordo com o padrão de vida elevado com o qual estava acostumado em São Paulo. Com essa e outras informações em mãos, os investigadores percorreram as creches que se encaixavam no perfil com uma história de cobertura: um policial paraguaio disfarçado de cliente perguntava à direção se ela estava acostumada a cuidar de crianças gêmeas, e se a escola via problemas em educar estrangeiros. No local onde estudaram os filhos do estuprador, um funcionário mordeu a isca e revelou que lá havia alunos com essas características. Daí em diante, foi fácil constatar que o pai dos gêmeos e o médico procurado eram a mesma pessoa. A prisão foi efetuada uma semana depois, após ele deixar as crianças na escola.

Ao desembarcar algemado no Brasil, Abdelmassih revelou, em entrevista a uma rádio, detalhes da sua fuga. De acordo com ele, foi guiando em direção a Avaré que ele soube do pedido de prisão, decretado em 2011. Ela ocorreu porque o condenado tentou renovar o passaporte. “Eles (a Justiça e o Ministério Público) achavam que eu ia fugir. Mas eu não ia. Ia passear”, disse. Antes de ir para o Paraguai, o ex-médico decidiu seguir para Presidente Prudente, também no interior paulista, onde se refugiou no haras da irmã. Passou, ainda, por Jaboticabal antes de se dirigir para Assunção. A polícia acredita que o criminoso atravessou a fronteira entre Foz de Iguaçu e Ciudad del Este para chegar lá.

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MARTÍRIO
O filho de Nelma nasceu com síndrome de Edward e morreu 86 dias depois.
Um exame, preterido por Abdelmassih, poderia ter detectado a doença genética

Abdelmassih também afirmou que morava há três anos e meio no país vizinho e que a ideia de fugir foi de Larissa. “Eu achava melhor me entregar. Minha mulher disse: ‘Não, vamos embora’.” A capital paraguaia foi escolhida pela proximidade, mas o destino final, relatou a policiais já depois da captura, era o Líbano ou a Itália. O plano não foi adiante porque faltaram recursos e ele não conseguiu a documentação necessária. A criminóloga e escritora Ilana Casoy explica que a falta de escrúpulos de Abdelmassih não ocorre apenas no âmbito sexual. “Ele não tem a linha divisória moral e sexual de escrúpulo. É um inescrupuloso que não vê problema onde todos veem.” Agora suas dezenas de vítimas terão a chance de assistir à justiça ser feita.

Fotos: AFP/Senad; Claudio Gatti/Ag. Istoé; Reprodução vídeo, Reprodução; Secretaria Nacional Antidrogas do Paraguai