Talvez Teresa*, um ano, nunca saiba que sua mãe tentou trocá-la por uma cesta básica mais R$ 20. Seus irmãos, Marcelo, quatro anos, e Mariana, dois, quase foram vendidos por R$ 600 e R$ 300, respectivamente. A barganha está relatada num processo da Vara de Infância e Juventude de Araraquara, interior de São Paulo. Não se sabe o motivo pelo qual as negociações dos mais velhos foram frustradas. Teresa até chegou a ser vendida, mas a mãe, 21 anos, se arrependeu e a resgatou da casa do comprador dias depois. Mas, em vez de berço, o nenê ganhou um cesto e, no lugar de colo, desprezo. Depois de denúncias por maus-tratos, Teresa e os irmãos foram abrigados no orfanato Renascer, naquela cidade, e estão sob a guarda do Estado.
O relato da negociação é apenas uma parte da história dessas crianças e de outros milhares iguais a elas. São os filhos do crack. Seus pais são dependentes de uma das drogas mais devastadoras que existem. É obtida a partir da mistura de cocaína com bicarbonato de sódio ou amônia e um solvente – éter ou acetona, por exemplo. O composto tem a forma de pequenos cristais. São aquecidos e fumados em cachimbos, muitas vezes improvisados. Essa é a versão mais poderosa da cocaína. Seus efeitos são multiplicados e o usuário fica dependente em menos de 30 dias. É mais do que um estimulante. Tira a fome, o cansaço, a sede. Não existe mal-estar. Quem inala aquela fumaça adquire uma força descomunal. Fica solto, corajoso, sem limites. A sensação dura 15 minutos. Logo em seguida, vem uma depressão insuportável. Bate a fissura. É preciso fumar mais e mais. A droga, em princípio barata (custa R$ 5 a pedra), torna-se cara. O normal é passar o dia fumando e não há dinheiro que baste. O jeito é roubar – não importa quem. A família, se estruturada, desmonta.

Maus-tratos – Para o dependente só existe a droga. Ele vira um mentiroso, um ator disposto a tudo para saciar seu vício. Acabam os amigos, a consciência, a casa, o amor. Como, então, cuidar de uma criança? Como apaziguar o choro, alimentar, dar banho, brincar? Sem os cuidados básicos, os filhos do crack ficam entregues à própria sorte. Muitos perambulam pelas ruas, vão para instituições ou ficam sob a tutela de alguém da família. Os irmãos Teresa, Marcelo e Mariana felizmente foram abrigados num orfanato fora dos padrões. Com 29 crianças, a entidade é mantida por famílias que perderam seus filhos de maneira trágica, em conjunto com comerciantes da cidade. No Renascer, elas vivem em pequenas casas que convergem para um pátio comum. Têm carinho, alimentação e assistência. Teresa e os irmãos chegaram lá há cinco meses maltratados e subnutridos. Ela não anda. Começou a se sentar somente agora, com um ano (uma criança em geral se senta com cinco meses). É tímida, reservada. Mariana ainda não fala. Tem crises de irritabilidade. O menino parece ser o mais saudável – emocional e fisicamente. É um moleque como outro qualquer – apronta e brinca o dia todo.

Foto: Alan Rodrigues
Patrícia nasceu de oito meses, com 1,5 kg. Está na Unidade de Terapia Intensiva da Santa Casa de São Paulo com problemas respiratórios e infecção generalizada

Pensar que os filhos de dependentes químicos nasçam com problemas é compreensível. Afinal, se apenas alguns cigarros durante a gestação comprometem o peso e muitas vezes o aparelho respiratório dos bebês, imagine o crack. O médico Pérsio de Deus, do Departamento de Investigações Sobre Narcóticos (Denarc) afirma que essas crianças podem ter sequelas como hiperatividade e irritabilidade. “O feto também corre o risco de ter o fígado muito sobrecarregado e sofrer uma insuficiência hepática”, diz. A experiência clínica de muitos especialistas mostra ainda que grande parte desses bebês nasce com problemas respiratórios e síndrome de abstinência. “A cocaína atravessa a placenta e circula livremente no feto. Quando o bebê nasce, acaba o suprimento da droga e ele sente falta”, diz o pediatra Cláudio Schvartsman, do Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Os sintomas são choro intenso, irritabilidade – o médico mal pode mexer na criança –, tremores e dificuldade para mamar. Os pequenos pacientes sofrem e precisam ser tratados como os adultos, com tranquilizantes. Muitas vezes vão direto para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

No entanto, ainda é grande a polêmica sobre as consequências do crack nas crianças. A neonatologista Marisa Schorr Salgado, da Santa Casa de São Paulo, dedicou sua tese de doutorado ao assunto e ela afirma que os únicos efeitos comprovados são baixo peso e cérebro menor – o que não significa necessariamente algum retardo. “É muito difícil associar problemas físicos somente com a droga. Em geral, a mãe dependente fuma, bebe, come pouco e não faz pré-natal. Por isso, os eventuais problemas do recém-nascido ocorrem por múltiplas causas”, explica.

Esse conjunto de fatores está presente no caso de Patrícia, que nasceu de oito meses na semana passada, na Santa Casa de São Paulo. Filha de Maria, 31 anos, o bebê tem 1,5 kg, está na UTI com dificuldades respiratórias e infecção generalizada devido a um problema no útero da mãe. Maria é dependente, fuma e bebe. Mora na rua com a outra filha, de três anos. O pai da menina está preso. Ela garante que usou crack só no começo da gestação. “Meu bebê nasceu antes porque levei um susto. Fumei muito na primeira gravidez. Mas nessa não”, afirma. Os médicos, no entanto, contam que ela chegou ao hospital dopada. Maria não é a única a negar a dependência. É comum as mães não revelarem sua condição. Mas ela está disposta a cuidar da filha. Quer levá-la para morar ao seu lado e da irmã, na rua. O chefe da Unidade Neonatal da Santa Casa, Paulo Pachi, diz que a menina inspira cuidados, mas deve ficar bem. “Esses casos ficam sub judice da Vara da Infância. A criança volta para a mãe se o juiz achar que ela tem condições de cuidar”, explica o médico.

Crescimento – Ainda não se sabe quantos são os filhos do crack. Sabe-se apenas que seu consumo cresce de maneira assustadora. Criado nos Estados Unidos, chegou ao Brasil há cerca de dez anos e espalhou-se principalmente em São Paulo. Por ser barato atingiu primeiramente os mais pobres. Hoje, está incrustado em todas as classes sociais – embora isso não seja dito – e começa a se espalhar pelo interior de São Paulo e outros Estados, como Minas, Bahia, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul. No Rio ele não existe porque os traficantes temem que comprometa o negócio da cocaína. As mulheres formam boa parte do grupo de usuários. Uma amostra disso pode ser vista no Programa de Atendimento à Mulher Dependente (Promud), ligado ao Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo. De 1996 até hoje, 203 usuárias foram atendidas pelo projeto. Cerca de 60% eram alcoólatras. Outras 65 eram dependentes de drogas – 49 delas usuárias de crack. Dessas mulheres, 21 tinham filhos e 12 utilizaram a droga na gestação. A coordenadora do programa, Patrícia Hochgraf, afirma que grande parte dessas mães é muito jovem. “Em geral, elas começam a fumar com 17 anos. A maioria é iniciada na droga pelos companheiros”, afirma.

Relatos de crianças maiores e das próprias mães confirmam a constatação da médica. Adriana, dez anos, conta que o pai fumava “pedra” e maconha. A mãe começou a usar influenciada por ele, assim como os quatro irmãos. Pouco tempo depois, foi presa em flagrante num pequeno roubo. Hoje, a menina está num abrigo, o pai vive em Campinas, interior de São Paulo e os irmãos foram para a Febem, na capital. Os avós foram assassinados na sua frente. “Meu pai queria que eu aprendesse a fumar, mas não consegui. Meu sonho agora é que minha mãe volte e a gente fique junto, com saúde”, diz Adriana, emocionada.

O problema do crack envolvendo crianças tem crescido a ponto de mudar a composição da população dos abrigos. A assistente social Silvia Costa Teixeira, da Casa da Criança Cristo Rei, também em Araraquara, vê essa mudança no seu dia-a-dia. “Há alguns anos, as crianças que vinham para cá eram filhas de prostitutas ou alcoólatras. Hoje também chegam muitas por causa do crack”, observa.

Emoção – Nesse abandono, tão dolorosas como as sequelas físicas são as consequências emocionais. Talvez seja impossível para o adulto imaginar a dor de uma criança que, de um dia para o outro, se vê sozinha, num lugar estranho, com pessoas desconhecidas. Sem a mãe ou qualquer referência. Essa situação muitas vezes se reflete no comportamento da criança ou em sintomas como a depressão infantil. Raquel, três anos e quatro meses, foi para a Casa da Criança em companhia da sua irmã, Ângela, um ano mais nova. O irmãozinho de nove meses foi para outro abrigo. Em poucos dias, Raquel, que mal forma frases, ficou num silêncio ainda maior. Não comia. Só balbuciava: “Mamãe, nenê.” A assistente social Silvia percebeu que ela sentia falta não só da mãe como também do irmão. “Pedimos ao juiz para trazer o menino. Quando ele chegou, Raquel o abraçava e beijava de uma maneira tocante. Foi lindo. Os três são muito unidos e não podem ficar separados. Pena que no Brasil as adoções conjunta são raras…”

Às vezes, a separação é difícil também para as mães. A faxineira Cristina, 25 anos, é um exemplo da dor amargada por quem é separada dos filhos por causa do crack. Dependente há três anos, está numa clínica de recuperação em Campinas há três meses. Foi a condição imposta pela Justiça para ela reaver os cinco filhos, enviados para um abrigo depois que vizinhos denunciaram a sua dependência. Deles, só possui algumas cartas e fotos guardadas como tesouro. “Me disseram que as crianças choram e estão cheias de piolho”, lamenta. “Pena que a minha escolha pela recuperação tenha chegado um pouco tarde.” Cristina carrega a culpa pela morte de uma filha logo depois do parto. Ela usou crack durante os nove meses de gravidez. “Foi por minha causa que ela não veio ao mundo. Mas a sua morte me sacudiu.”

Dor e perda talvez sejam as palavras que mais bem exprimem o sentimento dessas mães. Solange, 43 anos, fica com os olhos cheios de lágrimas ao se lembrar da filha que teve há cinco anos. Quando estava grávida, queria parar com o crack, mas não conseguiu. “No fundo, não desejava que ela nascesse, mas não tive coragem de abortar”, confessa. “Ela nasceu com 1,7 kg, foi para a incubadora e imaginei que ela poderia pegar uma infecção. Inconscientemente eu a matava.” A menina sobreviveu e ficou com a mãe por mais cinco meses, até que as duas foram encontradas na rua pela polícia. A criança foi levada para a Febem e Solange nunca mais a viu. “Sei que foi adotada. Peço a Deus que a abençoe e aos pais dela também. Não tenho nada dela nem uma foto.” Solange teve outra filha, hoje com três anos. A criança não tem sequelas e está com a tia. A menina motivou Solange a se livrar da droga. Está internada numa clínica e se prepara para voltar para casa.

Executivos – Os filhos do crack fazem parte de uma realidade que não pode mais ser encoberta. Engana-se quem pensa que eles são gerados só por casais desestruturados e de classe baixa. O renomado psiquiatra Arthur Guerra, de São Paulo, atende em seu consultório até executivos dependentes. São pais que buscam o tratamento quando percebem a desestruturação de sua família. O aumento do uso do crack é um problema social. Precisa ser combatido e, principalmente, evitado. No entanto, as iniciativas neste sentido são poucas. O Departamento de Investigações Sobre Narcóticos (Denarc), de São Paulo, tem uma divisão que faz um trabalho direcionado para a prevenção. Também oferece um serviço de assistência ao dependente. “Vamos a creches e escolas, por exemplo, dar informações sobre os perigos da droga. É um trabalho de formiguinha, mas importante”, conta o investigador Alexandre Prado Avilez.

À família cabe fazer a sua parte. Julgar o dependente e abandoná-lo à sua própria sorte – principalmente quando isso envolve crianças – não resolve. Até porque, quando elas são amadas e bem-tratadas, a sua sorte muda. Os irmãos Francisco e Rita são um exemplo do que um lar e carinho podem fazer por um filho do crack. O pai morreu assassinado e a mãe desapareceu. Os dois foram parar na casa dos avós em péssimas condições. Francisco tinha 23 dias e pesava menos de um quilo. Rita tinha um ano e dois meses, não conseguia sentar e apresentava marcas de queimadura de cigarro. Os tios assumiram o problema. Francisco ficou com Joana e Rita com José. Hoje, o menino tem cinco anos é esperto e saudável. Chama Joana de mãe e é extremamente amoroso. “Foi um presente que Deus me deu”, diz ela. Rita também está feliz e, assim como a carga de sofrimento herdada dos pais parece estar bem longe, as marcas de queimadura também desapareceram. É uma mostra de que, se o problema for encarado com vontade e sem preconceito, tem solução. Os filhos do crack são gerados pela desestruturação da sociedade. São, portanto, filhos de todos nós.