Eles não têm endereço fixo, registro em carteira e dificilmente se aposentarão. Mas esses artistas errantes, que até o ano passado não podiam ser atendidos pelo Sistema Único de Saúde, o SUS, por não ter como comprovar residência, colocam de pé uma máquina cultural que, no Brasil, só perde em preferência para a televisão e o cinema. Uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo mostra que um terço dos brasileiros teve o seu primeiro contato com a cultura embaixo de uma lona de circo, erguida e desmontada pelas mesmas mãos que amparam os saltos voadores dos trapézios e as claves de malabar, em terrenos onde muitas vezes não existe nem ligação de água ou de energia. E com a casa lotada.

CUL-ABRE-01-IE-2334.jpg
ANOS DE LONA
Val de Carvalho era atriz no prestigiado Teatro Oficina quando
descobriu o circo e se tornou a palhaça Xaveco Fritza

Por semana, dois milhões de pessoas passam pelas arquibancadas dos circos tradicionais brasileiros, de acordo com a Aliança Pró-Circo, instituição que representa cerca de duas mil dessas empresas mambembes e familiares em todo o País. São dez mil espetáculos por semana, sem nenhum apoio estatal que permitiria espetáculos para pouco público. “Não se trata de um fenômeno novo ou de um modismo; o circo é antigo. Mas a precariedade em que vivem e trabalham os profissionais ainda hoje acaba fazendo com que o circo tradicional apareça pouco, mesmo tendo uma frequência cada vez maior, principalmente nas periferias e no interior do País”, explica Bel Toledo, presidente da Cooperativa Paulista de Circo, ligada à Aliança Pró-Circo. “Esses números ficam escondidos porque, diferentemente do que ocorre na Europa e nos Estados Unidos, os grandes centros brasileiros não reservam áreas para receber a estrutura circense. Aqui, o circo precisa alugar o terreno. O que, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, muitas vezes torna a itinerância inviável”, diz ela.

CUL-ABRE-02-IE-2334.jpg
DINASTIA
César Guimarães entre os filhos Arthur, 9 anos,
e Bruna, 15: sexta e sétima geração no circo

Não por outra razão, César Guimarães, mantém seu circo, o Fiesta, em Águas de Lindoia, no interior paulista. Sexto na descendência de uma família circense, aprendeu o que sabe com o avô, fundador do antigo Circo Guaianazes. Hoje ensina os filhos, Bruna, 15 anos, acrobata aérea, e Arthur, 9, palhaço. O Guaianazes foi batizado assim por ter sido erguido no bairro de mesmo nome na capital paulista somente com doações da vizinhança. Já formado na arte de palhaço, Guimarães começou a tocar o seu Fiesta – que já teve patrocínio da Nestlé, mas hoje vive só e exclusivamente de bilheteria. “Como quase todos os empreendimentos do tipo”, comenta Bel Toledo.

CUL-ABRE-03-IE-2334.jpg
RETORNO
Mariana Maekawa deixou carreira estável no Cirque du Soleil
para se dedicar ao velho circo brasileiro

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

E, mesmo nesse cenário, talentos como a campineira Mariana Maekawa deixam a maior e mais rentável empresa do gênero, o canadense Cirque du Soleil, para voltar ao Brasil e se dedicar a números tradicionais do velho circo, abrindo mão não só da pirotecnia e da projeção internacional, mas de uma carreira estável e remunerada em moeda forte. “Só quem trabalhou no Soleil é capaz de descrever como é incrível”, diz a artista. Mariana acaba de voltar de Las Vegas, onde integrava o elenco do espetáculo “Beatles Love”, da companhia canadense que fatura US$ 1 bilhão por ano, e está feliz por apresentar um número de tecido (espécie de trapézio) no Festival Paulista de Circo, a ser realizado em Piracicaba, interior paulista, de 28 a 31 de agosto. “Deixei o conforto e a estabilidade do Soleil. Mas estou me desenvolvendo como artista.”

CUL-ABRE-04-IE-2334.jpg
SALA DE AULA
O Galpão do Circo é uma das escolas disputadas por jovens
que querem aprender a arte do picadeiro

Val de Carvalho era atriz do já prestigiado Teatro Oficina nos anos 1980 quando conheceu uma trupe de saltimbancos. “Foi amor à primeira vista e para sempre”, diz a atriz, que se autointitula a palhaça mais velha do Brasil, mas não conta a idade. “Nem matando.” Val, também um pioneira do gênero nos Palhaços da Alegria, ONG que apresenta números dentro de hospitais, engrossa o orçamento mensal ministrando aulas no Galpão de Circo, em São Paulo, uma das escolas especializadas no gênero que têm atraído nos últimos anos jovens de classe média interessados nas técnicas de picadeiro. Quando não está se apresentando sob a maquiagem e o figurino de sua personagem, Xaveco Fritza, Val se orgulha de poder passar para a frente a tradição de uma arte que atravessa séculos. Discípula direta do palhaço Picolino, hoje com 90 anos, a ex-integrante do Oficina não era de família de circo até a filha Noara decidir pela profissão. “Ela foi amamentada no camarim, não tinha muito jeito mesmo”, fala com saudades da filha, que há dez anos atua como trapezista do Cirque de Soleil, em Las Vegas. “Muito provavelmente, logo terei netos também de picadeiro.”

IEpag97a99_AbreCultura-3.jpg

Fotos: Pedro Dias/Ag. Istoé, João Castellano


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias