A igreja evangélica Fé Para Todos, no bairro Del Castilho, zona norte do Rio, ficou lotada na noite de segunda-feira 15. Misturados aos fiéis, seguidores de várias religiões foram ao templo em busca de algo que nada tem a ver com alento espiritual: estavam ali somente para receber o Cheque-Cidadão. “Se Deus quiser, esse homem vai ser presidente. É uma injustiça se não votarem nele”, pregava Kátia Cristina Rodrigues, 34 anos, referindo-se ao governador Anthony Garotinho (PDT). O programa do governo estadual destina cheques mensais de R$ 100 para 27 mil famílias carentes. A reação de Kátia mostra que o Cheque-Cidadão vem atingindo o objetivo de conquistar votos, de forma clientelista, comparável à antiga bica d’água. No regime militar, políticos cariocas ganhavam votos nas favelas prometendo torneiras coletivas. Quem escolhe os eleitores contemplados para ganhar o cheque são políticos, especialmente pastores das igrejas evangélicas, principal base eleitoral do governador e da vice-governadora, Benedita da Silva, do PT.

Ao mesmo tempo que encanta setores populares, o programa Cheque-Cidadão é alvo de pesadas críticas por transformar púlpito em palanque. Das 270 igrejas credenciadas, 84% são evangélicas. “Garotinho está praticando o populismo messiânico”, critica o deputado estadual Chico Alencar (PT). Responsável pela administração do programa, o pastor Everaldo Dias Pereira, subsecretário do Gabinete Civil, responde aos ataques: “Não passam de discriminação religiosa.” O pastor, escolhido pela fé, e não pela experiência administrativa, promete ampliar o programa para 40 mil famílias, elevando o gasto mensal, só com os cheques, para R$ 4 milhões.

O caráter eleitoreiro do projeto ficou evidente no sábado 6, quando Garotinho desafiou o ex-governador Marcello Alencar (PSDB) para um debate em seu programa na Rádio Tupi. Cerca de mil pessoas, mobilizadas por pastores, concentraram-se em frente ao prédio da emissora, próximo à Central do Brasil. O instrumento usado para atrair os “simpatizantes” do governador foi justamente o Cheque-Cidadão. Garotinho não perdeu tempo. Subiu num caminhão de som ao lado da primeira-dama, Rosinha, e comparou-se ao personagem bíblico José do Egito, que passou de escravo a conselheiro de um faraó. Classificou os críticos do Cheque-Cidadão como “desalmados” e “calhordas”. A subida de tom de Garotinho foi acompanhada pela radicalização de seus partidários. Um carro da imprensa, um oficial da PM e o carro de Marcello Alencar foram atingidos por ovos, arremessados pelos simpatizantes do governador. No fim das contas, o debate foi cancelado.
Denúncias de irregularidades levaram os deputados estaduais a cogitar da criação de uma CPI, abortada pela folgada maioria governista. As denúncias respingam no PT, recém-rompido com Garotinho. A escolha de petistas vinculados à vice Benedita da Silva para a distribuição do cheque em algumas igrejas reforçou a suspeita de exploração política por trás do programa que deveria ser social. “São acusações infundadas”, rebate o pastor Everaldo, ligado a Benedita e afastado do PT.

Com adesivo – Conforme apuraram os deputados que pretendiam criar a CPI, o deputado estadual Mário Luiz (PMDB) coordenava, na Igreja Ortodoxa do Brasil, em Madureira, a distribuição dos cheques de dinheiro público para fazer a sua campanha particular. O parlamentar se defende dedurando: “Antes, um membro da igreja candidato a vereador também distribuía cheques, junto com adesivos.” Mário Luiz disse ter recebido ameaças de morte por telefone, atribuindo-as ao fato de ter denunciado o tal candidato. A igreja de Madureira foi descredenciada. Outro episódio relacionado com o mau uso do cheque foi descoberto há um mês em São João do Meriti, Baixada Fluminense. O pastor Rogério dos Santos Gomes e dois auxiliares na Igreja Internacional da Graça de Deus foram presos por embolsar os cheques, falsificando assinaturas de moradores cadastrados.

Disque-denúncia – O volume de reclamações levou os deputados a destinar uma linha telefônica só para receber as denúncias. Muitas delas revelam que pastores só fazem cadastros contra a apresentação do título de eleitor. Outras contam que os religiosos obrigam os cadastrados a assistir aos cultos e até a participar de sessões de exorcismo. Há críticas também no meio evangélico. O pastor Odalírio Luis da Costa, que trabalha em um centro de assistência social do governo, defende a transferência da distribuição dos templos para as escolas. “Há milhares de igrejas recentes, muitas de procedência duvidosa. É possível algum cheque cair em terra que produz maus frutos”, acredita.
A argumentação do pastor Everaldo é de que muitas denúncias não atingem igrejas cadastradas. “Se houve aproveitadores, não foram credenciados por nós”, diz. Um dos piores efeitos colaterais do cheque é o grande número de religiosos sem ligação com o programa prometendo benefício a comunidades carentes para garantir uma afluência maior a seus templos. Um deles é Marcos Brummer, da igreja Casa da Bênção, em Costa Barros, zona norte. Ele cadastrou cerca de 600 pessoas carentes. “Eles só preencheram uma ficha de intenção”, minimiza Brummer. Os moradores de Costa Barros não entenderam assim e vivem assediando o religioso para cobrar o cheque. Lembram os reféns da esperança da bica d’água na favela.

Dos 437 integrantes do Núcleo dos Cristãos do PT, 62 recebem o cheque. Cinco petistas que votam com Benedita nas convenções do partido são responsáveis pelo programa em igrejas. É o caso de Maria do Carmo Oliveira, coordenadora na Assembléia de Deus de Senador Camará, zona oeste. Ela e o marido, o pastor Manuel Mathias de Oliveira, se filiaram ao PT em junho e desde novembro distribuem cheques. “O que há de errado? Querem prejudicar o PT”, reclama. O pastor Everaldo filiou 1.071 evangélicos ao PT de Benedita.

O governador admite e justifica o uso de dinheiro público para fortalecer igrejas de seu credo. Para Garotinho, não há problema em um pastor distribuir cheques convidando cidadãos para o culto. “É até um bem que eles fazem”, incentivou o governador, dois dias antes de ser aclamado pelos evangélicos, na Rádio Tupi, aos gritos de “Garotinho presidente”. Pouco antes, no programa Fala governador, ele apresentou pessoas carentes que recebiam o Cheque-Cidadão. Uma delas, a desempregada Conceição Ribeiro, mãe de seis filhos, se emocionou e expôs a marca do populismo ao confundir Garotinho com o apresentador de tevê Carlos Massa, o Ratinho.