Cena 1. Quarta-feira 16 de maio, meio-dia. De terno e gravata, sem camisa ou usando uniforme escolar, seis mil estudantes universitários e secundaristas tomam o campus da Universidade Federal da Bahia em clima de celebração. Querem seguir até o Bairro da Graça, onde mora o senador Antônio Carlos Magalhães. Engravatados do direito jogam capoeira, meninas sacam seus batons vermelhos para pintar “cassação” nas testas e namorados trocam juras de amor e palavras de ordem. Cartazes desenhados na hora dão o tom do movimento: “Vamos tirar a Bahia das trevas.” Uma imensa privada de espuma é erguida sobre a multidão, anunciando uma limpeza à vista. Roberto, Ênio, Daniel, Marcelo, Elaine, e todos os demais, se preparam para marchar. No carro de som, alguém toca Para não dizer que não falei de flores, a música de Geraldo Vandré que virou um hino contra a ditadura militar dos anos 60 e 70. Incrível. Trinta anos depois, os cara-pintadas baianos sabem a letra. De repente, o som de um berimbau é abafado pelo trote de cavalos e botas. Em poucos minutos, 500 policiais militares da tropa de choque, com cães rotweiler e cavalos, cercam o campus e sitiam a Faculdade de Direito. Chega a ordem do governador César Borges para o comando da PM: “Ninguém passa para a Graça.”

Cena 2. Primeiro timidamente, depois com raiva, estudantes protestam contra a invasão do campus pela polícia: “Abaixo a ditadura”, “libertem o campus”, gritam em coro. É a primeira vez que a UFBa é invadida desde o regime militar. Membros do Conselho Universitário conseguem um habeas-corpus na Justiça para retirar a PM do campus. Seis agentes da Polícia Federal chegam em dois carros para cumprir a ordem judicial e são ovacionados pelos estudantes. A PM reage com violência: em vez de se retirar, atira bombas de gás à queima-roupa sobre meninos e meninas apavorados, caça estudantes dentro de suas faculdades, joga cães sobre professores e ocupa de vez o campus, cercando todas as saídas. A primeira batalha ocorre no estacionamento da Faculdade de Direito. Ali caem primeiro Ênio Almeida e Daniel Dantas. Ênio, 16 anos, corre da polícia e é atingido por uma bomba, que explode próxima ao seu rosto, ferindo o olho esquerdo. Daniel, também de 16 anos, recebe uma carga pelas costas e tropeça. Outras duas bombas explodem ao seu lado. É arrastado pelos colegas com a camisa manchada de sangue. Algumas estudantes entram em pânico e ficam no meio da fumaça asfixiante do gás de pimenta. Marcelo Martins, 20 anos, arrasta algumas colegas para dentro de um prédio, depois senta e chora. “Vou morrer”, grita. Aparece uma ambulância da universidade. Em um minuto, está lotada de adolescentes. A poucos metros dali, Roberto Seixas, 18 anos, corre para o prédio da faculdade, mas uma bomba o atinge. Ele tomba sobre a escada.

“Estamos sitiados”, grita no celular o subprocurador da República Arx Tourinho, abrindo a agenda e ligando para procuradores, juízes e quem mais atendesse seu pedido de socorro. Alunos correm para as ruas do Vale do Canela e se escondem na Faculdade de Administração. Policiais em formação de combate atiram bombas de gás para o alto. Uma bomba explode nas mãos de Elaine Cerqueira, 18 anos, levada às pressas para o Hospital Geral do Estado com fratura exposta nos dedos. Depois de três horas de guerra, o cenário é desolador. Dezoito estudantes feridos, outros tantos presos. O campus é uma nuvem de fumaça. O comando da PM informa o êxito da operação: ninguém chegou na Graça. O bunker carlista só cairia na quinta-feira 17, após outra manifestação, a quarta em uma semana nas ruas de Salvador, dessa vez reunindo oito mil pessoas. Em frente ao Edifício Stella Maris, onde fica a cobertura de ACM, os estudantes lavaram a calçada e depois seguiram até o Fórum Rui Barbosa, onde enterraram um boneco do senador. Desta vez, a polícia não teve a ousadia de reagir.

“Chefe” – As duas cenas, que parecem extraídas dos anos de chumbo, fazem parte do cenário da ditadura carlista na Bahia. Com ousadia suficiente para ocupar o campus de uma universidade pública e atirar em estudantes só para impedir que chegassem às vizinhanças do apartamento vazio do seu chefe político. “A Bahia vive uma ditadura à parte neste país. A democracia não chegou aqui ainda”, lamenta a deputada Alice Portugal (PCdoB). No Tribunal de Justiça, ACM conta com desembargadores que costumam se referir a ele como “chefe”. O Tribunal de Contas do Estado é um estaleiro de políticos carlistas aposentados. Na Assembléia Legislativa, o carlismo ganha de 47 a 21 e impede todas as CPIs. Mas para a oposição ACM é “o Bode” da vez, apelido dado ao ditador Rafael Trujillo, que durante 31 anos dominou com braço de ferro a vida na paupérrima República Dominicana. Como todo ditador, Trujillo caiu. “Só que ACM é um coronel eletrônico”, emenda Jutahy Magalhães Jr., líder do PSDB na Câmara, que na terça-feira 15 enterrou no Cemitério Jardim da Saudade seu avô, o general Juracy Magalhães, 95 anos, curiosamente o homem que foi o mentor político de ACM, mas com quem estava rompido desde 1992. O senador não apareceu, mas todos ali sabiam que em Brasília ACM enfrentava outro tipo de agonia, a política, com os últimos dias de seu mandato. O controle sobre a mídia na Bahia é uma das armas mais poderosas do carlismo. Dono da TV Bahia, retransmissora da Rede Globo, e de suas demais repetidoras no Estado, ACM noticia o que quer, como quer.

As manifestações anticarlistas são cada vez maiores na Bahia, mas têm uma cobertura pífia. O grupo também manipula a seu favor o mais conhecido produto baiano: a música. A maioria dos artistas, grupos e blocos depende de eventos financiados pelo Estado ou pelas empresas de ACM, como a Rede Bahia e a Bahia Discos. Com essa chantagem, ACM conseguiu produzir um manifesto “voluntário” de 14 páginas, publicado no Correio da Bahia, com a rubrica de dezenas de artistas baianos. “Todos têm medo de retaliação se não apoiarem ACM”, conta Nelson Mendes, diretor cultural do Olodum, que não aparece na lista e deve entrar na geladeira do carlismo. “Não vão nos garrotear”, avisa o empresário Silvio Simões, diretor de A Tarde, maior jornal da Bahia, com mais de 90% dos leitores, mas que há dois anos não vê um centímetro de publicidade oficial do Estado ou do município. Rotulado pelo carlismo como “de oposição”, o jornal decidiu entrar na Justiça com uma ação contra o governo baiano. “Antônio Carlos tem os mesmos poderes de um ditador por aqui. Todos os demais se submetem aos seus interesses políticos e pessoais”, aponta o jornalista baiano João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, que, na terça-feira 15, sentiu o regime de exceção em que vive seu Estado: teve que lançar seu livro Memórias das trevas, uma biografia sem retoques de ACM, com 60 mil exemplares vendidos, sentado em um banquinho em frente à Livraria Siciliano. Foi proibido de lançar o best seller ali dentro.  

Do lado de fora

Juliana Vilas

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 livro Memória das trevas – a essência perversa da opressão, no qual o jornalista baiano João Carlos Teixeira Gomes revela detalhes do passado político de ACM, não pôde ser lançado nas livrarias Siciliano de Salvador. Promover um evento com a presença do autor foi julgado pela Siciliano “uma empreitada arriscada”. Segundo Luiz Ferreira, gerente da livraria do shopping Barra Salvador, “o lançamento poderia causar tumultos e exaltação popular”. Curioso é que a loja, de 400 metros quadrados, costuma promover lançamentos e noites de autógrafos. O gerente afirma que não houve proibição, já que “em Salvador, o livro só está à venda na Siciliano. Nenhuma outra tem.” Ferreira diz que a decisão não foi tomada por pressão, e que “a livraria é estritamente comercial e neutra”. As duas filiais de Salvador vendem em média 16 exemplares do livro por dia. “Vende muito bem” completa.


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