Desde que Fernandinho Beira-Mar foi preso pelo exército colombiano no sábado 21, os segredos do maior traficante do Brasil têm sido disputados pela Polícia Federal e pela polícia do Rio de Janeiro. Há razões para isso. Na terça-feira 24, quando voltou da Colômbia para o Rio, o secretário de Segurança do Estado, Josias Quintal, fez questão de afirmar que mantivera uma conversa informal com Fernandinho Beira-Mar e o traficante havia lhe fornecido uma lista com os nomes de policiais, políticos e empresários envolvidos com o tráfico internacional de drogas e de armas. “Muita gente deve estar sem dormir por causa disso”, alardeou o secretário, sem revelar nenhum nome. Dois dias depois, quando ficou definido que Beira-Mar ficaria sob a guarda da Polícia Federal, o secretário amenizou seu discurso. Encaminhou um relatório ao Ministério Público e afirmou que todas as denúncias feitas por Beira-Mar deveriam ser vistas com reservas. O governo do Rio não revela todos os nomes citados por Beira-Mar, mas entre eles estão dois deputados que participaram da CPI do Narcotráfico, dois delegados e um agente da Polícia Federal e pelo menos dois agentes da Polícia Civil do Rio de Janeiro.

Em novembro do ano passado, ISTOÉ conversou diversas vezes com Beira-Mar. Na ocasião, ele perambulava entre a Colômbia, Venezuela, Paraguai e Suriname. Contava com a proteção das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), usava um telefone móvel por satélite para se comunicar e revelou os nomes de políticos e policiais que chegaram a lhe dar proteção. “Ninguém chega no lugar onde estou na hierarquia do crime sem contar com a conivência e a proteção de autoridades. Isso custa muito dinheiro”, dizia o traficante. Beira-Mar se sentia traído com a prisão de suas irmãs e prestou um depoimento secreto à CPI do Narcotráfico em março do ano passado. O depoimento (leia trechos à pág.89), gravado em uma das salas das comissões da Câmara, foi conduzido por um agente da PF que se identificou como Oscar. “Não se pode dar ouvidos a um bandido foragido”, disse na época a deputada Laura Carneiro (PFL-RJ), ela própria citada no depoimento do traficante.

Os nomes – O deputado Wanderley Martins (PDT-RJ), membro da CPI, também foi citado por Beira-Mar. Segundo o traficante, Martins e Laura estariam lhe pedindo dinheiro em troca de proteção e faziam os pedidos através de Luiz Brivat, um agente da Polícia Federal que fora assessor de Martins. “O Luiz chegou a levar R$ 40 mil dizendo que era para o deputado Wanderley e a deputada Laura me protegerem na CPI”, disse Beira-Mar a ISTOÉ. “Depois, o Luiz, acompanhado de dois policiais civis do Rio, o Macedo e o Alexandre, foram extorquir minhas irmãs na Paraíba e levaram mais R$ 500 mil.” O traficante afirma que Luiz e o deputado Martins, que é delegado da PF, são seus cúmplices desde 1998, época em que começou a ter relações com as Farc. “O Wanderley e o Luiz me ajudavam a fazer a passagem de armas do Paraguai para a Colômbia, passando pelo Rio de Janeiro”, afirmou Beira-Mar a ISTOÉ. “Tudo isso é um absurdo. Ele é bandido e está procurando denegrir aqueles que prejudicaram sua vida”, rebate o deputado, principal responsável para que a CPI fosse investigar os crimes de Beira-Mar.

O delegado Getúlio Bezerra, da Polícia Federal em Brasília, é acusado por Beira-Mar de receber dinheiro de traficantes para que o patrimônio adquirido com dinheiro ilegal fosse poupado de um confisco. Segundo Beira-Mar, uma das vítimas de Bezerra teria sido o americano Paul Lir Alexander, preso em Minas Gerais, em 1999, com 900 quilos de cocaína. “O Paul está preso em Miami, mas seus bens permanecem intocados, inclusive coberturas no Rio”, afirma o traficante. Ele diz ainda que pagou mais de R$ 300 mil para que a Polícia Federal fizesse vista grossa a uma conta que mantinha em Alfredo Chaves, no Espírito Santo. “Na época, em 1999, essa conta tinha um saldo de R$ 2,3 milhões”, admite. “Não vou polemizar com um bandido desses”, reage o delegado Bezerra. “Ele só está tentando acusar aqueles que contribuíram para a sua prisão.” O delegado Aldeir Bório, responsável pela repressão ao tráfico na Polícia Federal do Rio, é outro policial citado por Beira-Mar. Era a ele que o traficante recorria quando se sentia traído pelos agentes a quem dava dinheiro. “Sempre que mineravam (extorquiam) e não cumpriam o acordo, eu avisava o doutor Bório. Às vezes, a sacanagem parava, às vezes, não, mas ele é um policial do bem.” Na noite de quinta-feira 26, o governador do Rio, Anthony Garotinho, prometeu que todos os nomes fornecidos pelo traficante seriam investigados pelo Ministério Público. Pode ser que agora haja uma efetiva apuração. No ano passado não houve, pois tudo o que Beira-Mar revelou na CPI também denunciou à promotora Márcia Velasco.

Ascensão e queda – Ao contrário do que procura transmitir a polícia do Rio, Fernandinho Beira-Mar está longe de ser um capo do narcotráfico. Ele não produzia cocaína. Estava, porém, muito acima dos traficantes brasileiros que exibem poder por controlar um ou dois morros. Beira-Mar era um gerente internacional do tráfico. Nas conversas mantidas com ISTOÉ revelou que desde 1998 deixou de priorizar o mercado brasileiro para colocar a droga na Europa e nos Estados Unidos. “Entreguei os pontos que tinha na Baixada Fluminense para alguns amigos administrar e passei a me dedicar ao envio internacional. Isso rende muito mais”, dizia o traficante. Ele explicou que pegava a cocaína na Colômbia por cerca de US$ 1 mil o quilo e repassava por US$ 2,5 mil no Rio e US$ 3 mil em São Paulo. “Precisa batizar (misturar outros produtos à cocaína) para ganhar US$ 1 mil por quilo, tirando as despesas com frete, manutenção de aeronave e propinas. Faturava cerca de US$ 300 mil por mês”, revelou. Beira-Mar explicou que no início de 1998 começou a fazer contato com as Farc, que precisavam de armas. “Passei a trocar armas por pó e logo percebi que o sujeito que colocava a cocaína na Europa ganhava pelo menos cinco vezes mais do que eu. Fiz um acordo com os guerrilheiros, apaguei esse sujeito e ocupei seu lugar”, disse o traficante, sem revelar o nome de quem havia assassinado.

No sábado 21, Fernandinho Beira-Mar foi capturado pelo exército Colombiano, em Vichada, nas fronteiras de Brasil, Colômbia e Venezuela. Trata-se de uma área de floresta até então controlada por cerca de 160 homens da 39ª Frente das Farc, comandada por Joaquin Ballen. Na região, há plantio e diversos laboratórios de refino de cocaína. Beira-Mar foi encontrado pela Força de Ação Rápida, comandada pelo general Carlos Alberto Fracica.

O cerco – O ataque final começou no início da noite, quando 200 homens realizaram o desembarque dos helicópteros e cercaram o terreno repleto de árvores onde estava o traficante, acompanhado de dois guerrilheiros: Nicasio e Tito. Foi feito um cerco de quatro quilômetros de diâmetro e ele acabou preso sem esboçar resistência. Beira-Mar estava enfraquecido graças ao esforço que despendia desde quinta-feira 19, quando conseguiu escapar de outra emboscada junto com três pessoas que faziam sua escolta. Nessa operação, o Exército contou com o apoio da Força Aérea, que obrigou a aterrissar numa pista clandestina o Cesna 206 de prefixo HK-2459P, onde estava o traficante, ferido por quatro tiros disparados por soldados colombianos.

Já em Brasília, onde chegou com forte aparato de segurança, Beira-Mar foi operado na madrugada da quinta-feira 26. De acordo com o laudo divulgado pelo Hospital das Forças Armadas, a cirurgia foi um sucesso. Uma fratura no úmero foi estabilizada com a colocação de um fixador externo com duas barras laterais. Sob efeito de analgésicos, antiinflamatórios e antibióticos, o traficante não tinha condições de prestar depoimento e até o final de semana iria permanecer em repouso numa cela privativa. Os médicos não descartam a possibilidade de nova cirurgia para a colocação de uma placa interna e parafusos no osso quebrado.

Na viagem de oito horas da Colômbia para o Brasil, o traficante se mostrou interessado em se informar sobre os acontecimentos do esporte brasileiro. Perguntou sobre o campeonato do Rio, a Seleção brasileira, os desempenhos do tenista Gustavo Kuerten e do piloto Rubens Barrichello. “Há mais de um mês não vejo tevê”, comentou ele. Um dos agentes federais que o escoltavam brincou: “Só dá você, o Arruda e o ACM.” Beira-Mar mostrou-se surpreendido e disse não ter a mínima idéia de quem era o tal Arruda. Na prisão onde está, o criminoso terá tempo bastante para ler o noticiário e descobrir quem é o “tal Arruda”.  

Colaborou Eduardo Hollanda (DF)

 

Dito para a CPI

ISTOÉ teve acesso à fita com a gravação do depoimento de Fernandinho Beira-Mar à CPI do Narcotráfico. A seguir, alguns trechos:

CPI – Você não quer fazer uma troca com a gente. Você se entrega e a promotora Márcia Velasco solta toda a tua família?
Fernandinho – Não dá para confiar. O Luiz (Brivat), quando ele me minerava (extorquia), disse para eu ficar tranquilo, que minha família ia parar de ser perseguida porque o deputado Wanderley Martins e a deputada Laura Carneiro estavam fazendo de tudo para me proteger. Já falei com a doutora Márcia Velasco que estão me sacaneando e nada foi feito. Veja só o que acontece: o Figueró (Celso Figueró, agente da PF em Belo Horizonte) está me minerando desde 1997, já falei isso para a promotora e nada acontece. Agora outros policiais do Rio vão para a Paraíba para sequestrar minha família. Fizeram um monte de pressão e me levaram mais de R$ 500 mil. Tudo isso eu comuniquei. Disse isso para o doutor Bório (delegado da PF do Rio)…

CPI – Esse doutor Bório, quem ele é?
Fernandinho – Ele é delegado da Polícia Federal no Rio de Janeiro.

CPI – Quem te levou dinheiro?
Fernandinho – O Alexandre (da Polícia Civil do Rio), o Macedo (da Polícia Civil do Rio) e toda a equipe, mais o Luisinho da PF. O Macedo já me levou US$ 300 mil. O Luiz dizia no telefone que era homem do deputado Wanderley e o deputado Wanderley e a deputada Laura tinham um acordo com a promotora Márcia para ferrar toda a minha família. Falava para eu dar o dinheiro que ia para a campanha e ficar quieto, porque eu era o bandido e eles eram os bonzinhos e estavam na CPI.