FABRIZIA GRANATIERI/AG. ISTOÉ

TERRITÓRIO NEUTRO Internos do Ipae, em Petrópolis, jogam bola durante o tempo livre. Excluindo os dormitórios, garotos e garotas convivem em todos os espaços

O cenário seria suíço, não fosse pela simplicidade de parte das instalações, como as cadeiras brancas de plástico do refeitório. Emoldurados por colossais montanhas de pedra à beira da BR 040, em Petrópolis, os 600 mil metros quadrados do Instituto Petropolitano Adventista de Ensino (Ipae) abrigam com conforto 530 alunos, 300 em regime de internato. À primeira vista, a descontração da meninada sugere tratar-se de uma escola comum. Mas a vida lá não é muito fácil, principalmente para os hormônios da adolescência. Um beijo flagrado é o suficiente para submeter o estudante ao Conselho de Disciplina, que pode tirar três pontos no “sistema de ocorrências”, dependendo do ardor da infração. Um cigarro aceso, menos três pontos, assim como o consumo de bebida alcoólica. Com dez negativos, a saída é a “transferência compulsória”, eufemismo para expulsão no vocabulário do pastor Ervino Will, 54 anos, diretor-geral da escola.

“Se alguém for pego fazendo sexo, usando drogas ou roubando, é transferido compulsoriamente”, avisa o dirigente. Na infância, como interno, Ervino conheceu a colega Luci, com quem se casou há 33 anos, teve dois filhos e três netos. Há 23 anos dirigindo escolas adventistas, ele garante que aplicou, na prática, o princípio que se esforça para introjetar nos pupilos. “Nós também não podíamos nem pegar na mão. Me orgulho de ter casado virgem”, conta.

Embora muita gente acredite que eles nem existam mais, os colégios internos continuam como uma opção educacional para alunos do ensino médio. “É uma posição muito pessoal, de cada família”, afirma Regina Vinhaes Gracindo, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília e integrante do Conselho Nacional de Educação. “Mas eu não vejo motivos, hoje, para uma família abdicar da possibilidade de influenciar a educação do filho adolescente e delegar essa responsabilidade para uma instituição.” A distância entre tanto rigor e os costumes liberais do século XXI contribuiu para a redução do número de internatos no Brasil. Mas é exatamente em busca da disciplina que não conseguem aplicar em casa que os pais procuram colégios como o Adventista. “Entrei para me enquadrar. Agora sei arrumar a cama e acabo de tirar 10 em física”, resigna-se Lucas Gesualdo, 17 anos. Morador de Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro, Lucas foi para Petrópolis após ter sido reprovado no primeiro ano do ensino médio do Saint Patrick, no Leblon. “No Rio eu perco a noção da hora porque pego onda e tem coisas demais para fazer.” O jovem se diz acostumado, mas reclama da falta de carne nas refeições e de liberdade, especialmente para namorar.

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MENINA NÃO ENTRA Mateus, Douglas, Juliano e Theillysson dividem um quarto com telefone e acesso à internet no dormitório da Unasp, em Engenheiro Coelho

O cardápio vegetariano do refeitório da Universidade Adventista de São Paulo (Unasp), onde fica o colégio da instituição em Engenheiro Coelho, no interior de São Paulo, também é uma das principais reclamações. Salsichas e hambúrgueres são escondidos nos dormitórios, para serem divididos no calar da noite com os companheiros de quarto. A demanda por produtos proibidos movimenta uma espécie de mercado negro no local. Internos contam que uma garrafa de dois litros de Coca-Cola chegou a ser vendida por R$ 10. E é possível ter acesso a outros comércios ilícitos no campus. “Já dividi quarto com uma menina que tinha um contato para comprar cigarros. Se pegam, é expulsão na certa”, conta Caroline Veríssimo, 16 anos, uma entre os mais de 180 alunos internos do ensino médio.

Na contramão do processo de extinção dos colégios internos, a igreja adventista expande seus institutos e universidades pelo País. Presentes em todos os Estados do Sul e Sudeste brasileiro, eles têm, entre outras, uma unidade em Taquara (RS), inauguraram neste ano uma em Joinville (SC) e em 2009 chegam a Belém (PA). “Sabemos que os internatos estão fora de moda, e eles nem são viáveis como negócio. Investimos no modelo porque acreditamos na filosofia”, afirma o diretor-geral de Engenheiro Coelho, José Paulo Martini. A igreja subsidia seus 18 internatos no Brasil. A mensalidade- base dos alunos externos dos colégios da instituição não chega a R$ 400 – no internato, é de aproximadamente R$ 1 mil.

Apesar de a mensalidade também ser de cerca de R$ 1 mil para os internos, o ambiente é mais modesto no Instituto São Pedro de Alcântara, também em Petrópolis e a única opção ao Adventista no Estado do Rio. O prédio com as salas de aula, o alojamento e um pequeno pátio – onde a única atração é uma disputada mesa de pingue-pongue – ficam espremidos em um terreno em aclive de 700 metros quadrados. É uma escola leiga e mista, com 300 alunos, e o internato é só masculino, com 70 vagas. Os portões ficam abertos, mas ninguém sai, até porque geralmente não há para onde ir.

Em comum, os colégios internos remanescentes mantêm uma rotina britânica de horários. No Ipae, ao toque de recolher das 22h, as luzes são desligadas e os alunos despertam às 6h com uma sirene. Para as meninas da Unasp, uma boa amizade com as “prepas” (como são chamadas as monitoras responsáveis pela fiscalização e o suporte pessoal aos alunos) é a chave para garantir algumas regalias marginais ao regulamento, como momentos a mais de luz durante o black-out noturno.

HORA DOS ESTUDOS Alunos do Instituto Adventista Cruzeiro do Sul, em Taquara (RS), usam a biblioteca para complementar as atividades de classe

As “prepas” também formam a barreira a ser superada às portas dos dormitórios após o pôr-do-sol todas às sexta- feiras, quando acontece o culto religioso para os internos. Elas avaliam as roupas escolhidas pelas meninas para que não haja exageros (como saias acima do joelho). “É um desfile de moda. Tem garota que começa a se arrumar às quatro da tarde”, diz Camila Veríssimo, 17 anos, sobre a noite mais esperada da semana. A companheira de quarto, Larissa de Benedito, endossa a importância social do evento. “A gente se produz mesmo, porque ‘bomba’. Não pode dar na cara que está paquerando, mas sempre rola um olhar”, confessa.

Embora o regulamento do internato proíba o contato físico – não é permitido nem andar de mãos dadas –, há alguns artifícios para burlar a vigilância. “Quem quer fazer algo mais vai para a mercearia”, diz Mateus Benvenutti, 15 anos. Ele se refere à loja de conveniência instalada logo à entrada da Unasp.

Mesmo dentro do campus a rígida disciplina é atenuada, ao menos em datas específicas. Faz parte do calendário de alguns colégios adventistas a Festa dos Namorados, evento no qual os casais têm direito a ambiente com velas e alguns minutos de mãos dadas. Aluna do Ipae, a americana e filha de pastor adventista Lorraine Castro faz graça da disciplina rígida nos internatos. Para ela, a falta de contato físico “estimula a discussão da relação”. A companheira de quarto Lilian Loura concorda. “Em nenhum lugar os namorados têm tanto tempo para conversar como aqui”, diz, tendo ao fundo uma escrivaninha entulhada de livros, em que os dizeres de um quadro de madeira dá o clima reinante de amizade. “Bem-vindo ao nosso hospício: aqui somos loucos, uns pelos outros.”

 



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