O desembargador Fernando da Costa Tourinho Neto é um daqueles juízes que não têm medo de falar o que pensa. Recém-empossado presidente do Tribunal Regional Federal da primeira região, que engloba o Distrito Federal e mais 13 Estados das regiões Norte, Centro-Oeste e parte do Nordeste, este baiano de 57 anos, casado, três filhos e pouco mais alto que seu ídolo, Rui Barbosa, tem opiniões firmes sobre o País, o governo, o Congresso e o Judiciário. Tourinho, que também foi promotor, considera justa a invasão de fazendas improdutivas pelos trabalhadores sem-terra, denuncia politicagem na indicação de ministros de tribunais superiores e diz que só se compromete a cumprir leis justas, porque há muita injustiça legalizada. Na carreira há quase 30 anos, Tourinho também preside a temida Associação dos Juízes Federais, categoria que já ameaçou greve geral. Filho de promotor do interior da Bahia e de uma professora primária, o bem-humorado desembargador foi criado como católico, mas hoje não tem religião. Tourinho recebeu ISTOÉ e continuou cuspindo fogo.

ISTOÉ – Juiz tem que ter opinião?
Fernando da Costa Tourinho Neto – O juiz tem que sentir e saber o que se passa ao seu redor, como vive o cidadão e a população para poder decidir. Se ele não percebe isso, será um ser estranho decidindo sem buscar a solução de um conflito. A Justiça deve solucionar, e não adiar conflitos, não pode mascarar uma solução, tem que resolver. O juiz deve ter opinião porque não há Justiça neutra. O juiz é um cidadão comum, decide a favor da classe dominante ou dos oprimidos. O fundamental é a imparcialidade, mas juiz neutro não existe, não existirá nem nunca existiu. Ele é fruto de uma sociedade que o influenciou. O mal do nosso juiz começa no ensino preconceituoso, orientado para dar guarida a teses da classe dominante. Veja o exemplo do Código Civil. Ele é perfeito tecnicamente, mas lá vale mais a propriedade e a riqueza do que a necessidade dos homens, um código da classe dominante.

ISTOÉ – O que é preciso mudar?
Tourinho – Muita coisa. O Código Civil, por exemplo, dá mais valor à propriedade da terra, quando o essencial é a sua posse, e não o documento. O fundamental é a produção. De que adianta um latifúndio documentado se o dono nada produz? Essa terra tem que ser ocupada por alguém que vá produzir. Isso é que faz a riqueza do País. O mesmo ocorre com um sem-terra que recebe um lote e nada produz. Ele também tem que deixar para outro assentado que vá plantar.

ISTOÉ – Este é o mesmo argumento do MST. Eles têm razão quando invadem um latifúndio?
Tourinho – Se ninguém estiver produzindo no latifúndio, a invasão é justa.

ISTOÉ – E o respeito à propriedade?
Tourinho – Defender a propriedade apenas porque está documentada por alguém, sem a posse, é até um crime contra o povo. Se a terra não está produzindo, o que adianta? Nada. Está prejudicando a todos. Mas se o proprietário está trabalhando, a terra sendo utilizada e produzindo adequadamente, não pode ser ocupada. Não defendo a repartição da terra somente para dividi-la com quem não tem. Pode ser que no futuro eu venha a defender isso.

ISTOÉ – Não é ilegal invadir terras?
Tourinho – A invasão é um descumprimento legal, mas a ocupação é justa nos casos de fazendas improdutivas, abandonadas pelo proprietário. O Movimento dos Sem-Terra é uma organização invejável que ocupa e não invade as terras abandonadas pelos proprietários. Se o governo não age, agem os sem-terra. Concordo com os sindicalistas quando dizem que o direito de propriedade está agredindo o direito à vida.

ISTOÉ – No seu discurso de posse, o sr. fala que os juízes terão de fazer opção: ou Justiça da minoria, dos dominadores, ou da maioria, dos desvalidos. A Justiça tem lado?
Tourinho – O lado da maioria. A Justiça faz parte do poder, que é composto por uma minoria que domina o País e faz as leis. Não quero dizer que haja ditadura, a democracia é plena. Mas, se o juiz interpretar as leis incondicionalmente, provocará prejuízo à grande maioria dos desvalidos. A Justiça não é cega, nunca foi. Simbolicamente esse princípio é perfeito. Justiça é cega para não ver diferenças entre ricos e pobres, brancos, pretos ou amarelos ou pessoas de qualquer credo, nem discriminação entre mulher e homem. A Justiça tem de ser é imparcial.

ISTOÉ – Também no seu discurso o sr. fala que fazer justiça é tomar partido. O que significa isso?
Tourinho – Não existe Justiça neutra. Ou ela é comprometida com o grupo dominante ou com os oprimidos, a imensa maioria. Nós, juízes, temos de fazer opção, temos de tomar partido. Sempre foi assim. O problema é que a Justiça sempre tomou partido dos dominantes, interpretando a lei de forma linear, sem levar em consideração a sua finalidade, o seu sentido. E tem mais: nem tudo o que é legal é justo. Ao tomar posse não prometi somente cumprir as leis do País. Prometi cumprir as leis justas porque há muitas leis iníquas. O justo para os dominadores não é o mesmo para os dominados. O que é ordem para uns é dominação para outros. Tudo o que possa afetar a segurança dos dominadores, a estabilidade das instituições econômicas, significa desordem, injustiça, subversão.

ISTOÉ – Cumprir apenas as leis que o sr. considera justas não é perigoso, não é antidemocrático?
Tourinho – O que eu quero é a Justiça da maioria, dos oprimidos.

ISTOÉ – Mas as leis não são feitas pelo Congresso, que é eleito para representar o povo, inclusive os oprimidos?
Tourinho – Na verdade os eleitores são enganados. Quando votamos pensamos que estamos escolhendo um deputado para nos representar. Na verdade, a grande maioria vota enganada pelo poder econômico, induzida a votar em um candidato financiado por grandes empresários, embalado pelo marketing das campanhas fantásticas e caras. A mídia, de forma subliminar, também faz campanha a favor das elites, principalmente a tevê. Acreditamos escolher os eleitos, mas estamos enganados. Legalmente o Congresso representa o povo, mas, se formos examinar como eles foram eleitos, verificaremos que a maioria esmagadora não tem nada a ver com o povo. Você acha que as grandes empresas, grandes construtoras vão investir num candidato e ele, se eleito, fará leis que contrariem os interesses dos financiadores? Jamais! Eles farão leis que agradem e beneficiem a esses grupos. Isso é uma forma de corrupção que atinge o Legislativo e também o Executivo. E nós continuamos enganados.

ISTOÉ – Qual a alternativa, quem nos mostraria os candidatos, quem financiaria as campanhas?
Tourinho – Tem de haver uma mudança na lei eleitoral. Tenho dúvidas sobre a proposta de financiamento público das campanhas porque não temos condições de fiscalizar os gastos dos candidatos.

ISTOÉ – A tese do sr. é que quem manda no País é a classe dominante, ela é quem produz e aplica as leis, a classe dominante é o patrão da Justiça?
Tourinho – Se o juiz aplica as leis de forma linear, sem levar em consideração a realidade, ele está sendo dominado, está coadjuvando com a classe dominante. Se ele se rebela, não tem patrão. O juiz só tem patrão se quiser. Há muitos juízes que têm patrão.

ISTOÉ – Também em tribunais superiores?
Tourinho – Sim. Talvez haja mais juízes com patrão em tribunais superiores que na primeira instância.

ISTOÉ – Quem são os patrões de ministros de tribunais superiores?
Tourinho – Na verdade é o próprio governo. Quando um juiz considera ilegal a invasão de um latifúndio improdutivo, por exemplo, está decidindo em favor de um explorador, atendendo interesses dos fazendeiros, da classe dominante, que são os mesmos do Poder Executivo e da cúpula do Poder Legislativo.

ISTOÉ – O sr. já foi cogitado para ser ministro do Superior Tribunal de Justiça. Por que seu nome não emplacou?

Tourinho – Eu queria ser ministro do STJ, que considero um grande tribunal. Cheguei a ter 11 votos. Mas as minhas idéias não combinavam com a da maioria. Para viabilizar minha indicação, teria que arrumar padrinhos e defender teses jurídicas parecidas que agradassem à maioria dos juiízes. Teria que escrever artigos em jornais contra o chamado direito alternativo e repudiar o controle externo do Judiciário, teses que defendo. Isso não era para mim. Teria que me violentar, seria uma humilhação. Desisti.

ISTOÉ – Para ser ministro de tribunal superior tem que fazer jogo político?
Tourinho – Tem que estar de acordo e andar pari passu com o que o governo quer.

ISTOÉ – Há corrupção e nepotismo no Judiciário?
Tourinho – Suspeito que haja. A implantação da quarentena de três anos ajudaria a reduzir a corrupção. Quanto ao nepotismo, já há decisão do Supremo impedindo essa prática condenável. A relação muito íntima entre ex-juiz que está atuando como advogado e o seu ex-colega ainda juiz não deixa de ser uma forma de corrupção. E tem mais: hoje um cidadão está em um cargo servindo ao Executivo. Amanhã passa a decidir no Judiciário as causas de interesse do governo a que ele serviu. Isso é inconcebível.

ISTOÉ – O sr. é um juiz de oposição?
Tourinho – Oposição a tudo isso que está aí beneficiando o governo, isso eu sou. O que precisamos é de reformas que fortaleçam a sociedade e não o Estado. A reforma do Judiciário tem como objetivo principal aumentar a força do governo, a da Previdência, tirar direitos dos cidadãos. A reforma tributária eleva a carga de impostos, a administrativa aumenta a burocracia e propicia maior corrupção. O que precisamos é de reforma que faça o País crescer, prosperar e fazer o povo feliz.