Acabou a farsa. Exatos dois meses após a explosiva conversa do senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) com os procuradores da República Luiz Francisco de Souza, Guilherme Schelb e Eliana Torelly – divulgada por ISTOÉ –, na quinta-feira 19 a ex-diretora do Serviço de Processamento de Dados do Senado Regina Célia Peres Borges revelou ao Conselho de Ética todos os passos da operação para fraudar o painel eletrônico e extrair uma lista com a posição de cada parlamentar na votação secreta que cassou o mandato de Luiz Estevão. Conforme também antecipou ISTOÉ, ela confirmou que ACM teve como parceiro na empreitada criminosa o líder do governo no Senado, José Roberto Arruda (PSDB-DF). A confissão de Regina Borges de que comandou a violação do painel de votação – por ordem da dupla de parlamentares – derrubou de vez o festival de mentiras e de álibis mal arranjados protagonizados por Antônio Carlos e Arruda na tentativa de salvarem os próprios pescoços. No embalo das revelações, o líder do bloco de oposição no Senado, José Eduardo Dutra (SE), finalmente, confirmou de público as conversas que manteve com Arruda e ACM antes e depois da cassação de Estevão, também reveladas por ISTOÉ. As confissões dos funcionários do Prodasen, os depoimentos de Dutra e dos três procuradores da República e as perícias feitas por especialistas da Universidade de Campinas desvendaram toda a maracutaia e são provas material, técnica e testemunhais contundentes e mais do que necessárias para os senadores cassarem os colegas ACM e Arruda por falta de decoro parlamentar. “Não pode haver espírito de corpo nesse caso. Se continuar como está, as pessoas entenderão que o Senado está com fachada de catedral e fundos de bordel”, disparou o presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Bernardo Cabral (PFL-AM).
 

Não era blefe – A operação para fraudar o painel eletrônico começou no dia 27 de junho do ano passado, véspera da sessão em que, pela primeira vez na história republicana, o Senado cassou um de seus integrantes – Luiz Estevão. Naquela terça-feira, enquanto ACM chamava senadores a seu gabinete para dizer que tinha meios de saber como cada um votou, Arruda repetia a mesma história em conversas com outros colegas. Um de seus interlocutores foi o petista José Eduardo Dutra. Poderia ter sido um blefe para influenciar o voto dos senadores, porque votar a favor de Estevão desagradaria à opinião pública, chocada com a turma envolvida no milionário escândalo do TRT paulista. Mas foi muito mais do que isso. Depois de assistir à posse do ministro Fernando Neves no Tribunal Superior Eleitoral, o senador Arruda convocou Regina Borges – uma correligionária do PSDB brasiliense e apadrinhada na indicação como diretora-geral do Prodasen – para uma conversa em sua casa. Lá, comunicou que o parceiro ACM, então todo-poderoso presidente do Senado, estava mandando que fosse extraída a lista de votação. Mesmo com 25 anos de Senado, Regina aceitou fazer o serviço sujo. Com a ajuda do marido, Ivar Alves Ferreira, também funcionário do Prodasen, e de outros três servidores do Senado, a famosa lista foi retirada do painel no dia seguinte. Depois de passar pelas mãos de Arruda, ela foi entregue ao cacique baiano. Horas depois, um vitorioso ACM telefonou para Regina e agradeceu a remessa da folha de papel sem identificação, mas que continha os votos a favor e contra a cassação de Estevão.

No melhor estilo de quem fez carreira política e fortuna nas sombras da ditadura militar, Antônio Carlos estava duplamente satisfeito. Podia posar como paladino da moralidade por ter patrocinado a investigação das falcatruas da turma do juiz Nicolau e a cassação de Estevão. Mas também tinha em mãos um papel que lhe dava poderes para pressionar senadores a entrar no seu jogo para fazer o sucessor na disputa pelo comando do Senado. Sua primeira vítima foi Heloísa Helena (PT-AL), uma combativa parlamentar que ousava desafiá-lo em plenário e – conforme asseguram senadores e assessores que leram a relação de votos – aparece na lista como tendo votado a favor de Estevão. Fez questão de contar a novidade a José Eduardo Dutra logo no dia seguinte à votação: “Sua líder não votou conosco”, ironizou. Há quase um ano, ACM se diverte contando a senadores e a jornalistas como votaram Heloísa Helena e outros parlamentares. O coronel baiano espalhou, por exemplo, que Bernardo Cabral se absteve e os senadores José Sarney (PMDB-AP), Edison Lobão (PFL-MA) e Jonas Pinheiro (PFL-MT) também votaram pró-Estevão. Arruda também fazia inconfidências: confirmava o voto de Heloísa Helena e revelava que a senadora gaúcha Emília Fernandes – que trocou o PDT pelo PT – também absolveu o ex-senador brasiliense. A diversão chegou ao fim com a divulgação por ISTOÉ, na edição que circulou em 28 de fevereiro, da conversa em que ACM contava aos procuradores que tinha a lista.

A partir daí, Antônio Carlos, Arruda e Regina participaram de uma conspiração para esconder a verdade. À beira de um ataque de nervos, Regina procurou Arruda durante o Carnaval e contou suas aflições com o cerco que começava a se fechar. O então líder do governo tentou acalmá-la e insistiu que nada falasse sobre o assunto. “Isso aí tem de ser sigiloso, não se fala nisso nem sob tortura”, já havia dito Arruda depois que a coluna de Ricardo Boechat, no jornal O Globo, divulgara que Heloísa Helena votara a favor de Estevão. No mesmo dia, a então diretora do Prodasen falou com ACM, que entregou o parceiro. “Isso é coisa do Arruda.” Um dia antes da publicação da nota de Boechat, Heloísa Helena e o líder do governo tiveram um bate-boca na subcomissão que investigava as denúncias contra o ex-secretrário-geral da Presidência Eduardo Jorge Caldas Pereira. Com a divulgação por ISTOÉ da confissão de Antônio Carlos aos procuradores, Regina tentou e não conseguiu falar com o ex-presidente do Senado, que estava em Miami praticando outro de seus exercícios prediletos: ameaçar Fernando Henrique com a divulgação de dossiês contra o governo.

Antônio Carlos voltou a Brasília na segunda-feira 26 de fevereiro e recebeu Regina em seu gabinete, quando ela foi fotografada por ISTOÉ. A ex-diretora do Prodasen estava preocupada com a segunda reportagem da revista. Em outra ocasião, voltou a procurar ACM, que marcou um encontro sigiloso na casa da assessora Isabel Flexa de Lima, filha do embaixador do Brasil em Roma, Paulo Tarso Flexa de Lima. Lá, ela manifestou a preocupação com a possibilidade de a Unicamp descobrir a fraude e chegou a sugerir que ACM desse um tempo na briga com o presidente do Senado, Jader Barbalho (PMDB-PA), para tentar acalmar as coisas. O conselho não foi aceito. Enquanto Antônio Carlos se enrolava todo e mudava de versão como quem troca de camisa, o parceiro Arruda fingia-se de morto. Conspirava com ACM para tentar evitar que a fraude fosse descoberta, mas para despistar falava mal do colega baiano em conversas reservadas com jornalistas e parlamentares. Na segunda semana de abril, em reportagem com o título “Abraço de afogado”, ISTOÉ revelou a participação de Arruda na trama. O líder do governo saiu das sombras e negou tudo, até que tenha sido padrinho político da nomeação de Regina Borges para o comando do Prodasen. A mentira durou pouco.

Álibi furado – Surpreendida na segunda-feira 16 com o laudo da Unicamp e a confissão do operador do Prodasen Heitor Ledur de que havia participado da violação do painel eletrônico, Regina resolveu abrir o jogo. Confirmou o crime e revelou a participação de ACM e Arruda. Como sempre, o desacreditado Antônio Carlos disse que era tudo mentira. Numa reunião com assessores e advogados, Arruda decidiu adotar como estratégia de defesa a apresentação de álibis para tentar desmentir Regina. Mas havia um buraco de quase duas horas no cronograma que preparou para convencer os senadores: ele saiu antes das 21 horas da posse de Fernando Neves e só bem mais tarde se encontrou com o jornalista Ricardo Noblat, do Correio Braziliense, em um restaurante de Brasília. “Recebi um telefonema de um insuspeito jornalista, Ricardo Noblat, dizendo que estava me esperando no Piantella”, afirmou Arruda da tribuna do Senado. “É mentira. Não telefonei para o senador e quando cheguei ao restaurante ele já estava lá”, negou Noblat. Foi mais um desmentido a Arruda. Na quarta-feira 18, ele teve uma constrangida conversa com Fernando Henrique no Palácio da Alvorada. O presidente chegou a comentar com assessores que Arruda já não era mais o líder do governo e faria o anúncio no Senado. Mas o parlamentar por Brasília deu outra versão: estava prestigiado pelo presidente. Não resistiu 24 horas e teve de se afastar da liderança do governo na manhã do dia seguinte.

Arruda também foi desmentido pelo senador José Eduardo Dutra. Quando ISTOÉ publicou que, na véspera da sessão que cassou Luiz Estevão, Arruda contou a Dutra que tinha como saber como os senadores votariam, o ex-líder do governo negou que tivesse tido a conversa. Mesmo colocado contra a parede pelo senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), Dutra escapuliu e não confirmou nem desmentiu a informação de ISTOÉ. Na quinta-feira 19, o líder do bloco das oposições finalmente revelou a verdade ao Conselho de Ética: “Há um divisor de águas. Com a divulgação do laudo da Unicamp que comprovou a violação do sigilo do voto e o depoimento da ex-diretora do Prodasen, todas as conversas deixam de ser privadas. Na véspera da sessão que cassou Luiz Estevão, estive no gabinete do senador Arruda e ele me disse que tinha como saber como votaram os senadores.” Segundo Dutra, essa informação foi transmitida a sua bancada, inclusive a Heloísa Helena. Outros senadores também ouviram a mesma revelação de Arruda, mas até agora se mantêm calados. “Esse tipo de conversa não foi feito só comigo. Espero que outros senadores venham a público e contem o que sabem”, conclamou Dutra. Se Dutra com sua nova atitude saiu de uma situação altamente constrangedora, a colega Heloísa Helena continua na fogueira.

O fato de os engenheiros de computação da Unicamp terem assegurado que não houve mudança de voto na sessão que cassou Estevão torna ainda mais delicada a posição de Heloísa. “Ficou muito difícil. Infelizmente, ela vai ter de se explicar ao partido e aos eleitores”, lamentou um importante líder do PT. O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) ainda tentou ensaiar uma saída para Heloísa e admitiu que ela possa ter se enganado na hora de votar. Não deu certo. Seria uma terceira explicação para o possível voto de Heloísa a favor de Estevão. A primeira foi de que isso era impossível porque ela tinha certeza de ter votado contra o ex-senador brasiliense. Depois, ela disse que, se aparecesse a lista e mostrasse seu apoio a Estevão, seu voto teria sido fraudado.

O mesmo dirigente do PT explicita a situação atual da senadora: o desgaste político já está feito. Está cada vez mais difícil para Heloísa Helena convencer a opinião pública de que não votou a favor de Luiz Estevão. E se essas dúvidas aumentarem, ela pode acabar excluída do partido. A situação da petista, no entanto, é muito melhor do que a de Arruda e a de Antônio Carlos Magalhães. A profusão de provas contra a dupla – laudos técnicos, gravação, depoimentos de procuradores, confissões de quem executou a fraude – coloca as cabeças de Arruda e de ACM na guilhotina. Não dá mais para tudo terminar em pizza. “Isso é lamentável, inaceitável. Antes de querer investigar o governo, o Senado que arrume a casa”, cobrou Fernando Henrique, tirando uma casquinha do envolvimento de dois senadores pesos pesados na fraude. Depois de todas as revelações durante a última semana, não há no Senado quem aposte mais uma ficha sequer na sobrevivência política de Antônio Carlos e de Arruda.
Aos senadores, resta apenas cumprir as formalidades legais
da cassação.

“Deus sempre escreve certo!”

Eduardo Hollanda

Surpreso com a confissão da funcionária Regina Borges de que foi ela quem realizou a violação do painel do Senado a mando do então presidente da Casa, Antônio Carlos Magalhães, e do líder do governo, José Roberto Arruda, o ex-seminarista Luiz Francisco de Souza exclamou na quarta-feira 18: “Deus sempre escreve certo!” Quando recebeu o então todo-poderoso ACM na Procuradoria da República, na tarde de 19 de fevereiro, Luiz Francisco não imaginava o desfecho que aquela reunião com outros dois procuradores e um assessor do senador poderia ter. Para evitar que o encontro fosse usado como instrumento de chantagem contra o governo, ele resolveu gravar a conversa, que acabou divulgado por ISTOÉ.

Nesses dois meses, o procurador resistiu ao fogo cruzado sem nunca ter arredado um centímetro da busca pela verdade. Em alguns momentos chegou a temer que, ao revelar as confissões de ACM, beneficiasse seu arquiinimigo Luiz Estevão, já que toda a polêmica gira em torno dos votos da cassação do então senador. Hoje está convencido de que Estevão não volta ao Senado.

De gestos desajeitados, mas considerado brilhante pelos colegas, Luiz Francisco provocou a demissão de dois ministros e de altos funcionários apadrinhados de ACM. O escândalo poderá resultar na cassação do cacique baiano e de Arruda, que se juntarão à farta lista de inimigos poderosos do procurador, que iniciou a carreira no Acre. Lá, ele bateu de frente com o governador Orleir Cameli, o homem que tinha três CPFs e acabou banido da política. E com o coronel da PM Hildebrando Paschoal, que mandava matar seus adversários com motosserras, protegido pelo mandato de deputado federal, e acabou cassado. Ameaçado de morte, foi transferido para Brasília. Seguiu enfrentando gente poderosa, como Eduardo Jorge Caldas e o ex-diretor da Abin, Ariel de Cunto.