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Confira uma entrevista com Jaime Franco, diretor da Federação Paulista de Futebol que acompanhou todas as partidas da Seleção na Copa de 50.

Os 64 anos que separam as Copas do Mundo de 1950 e de 2014 foram capazes de transformar o Brasil de forma profunda. Em pouco mais de seis décadas o país deixou de ser majoritariamente agrário para se transformar em uma nação em que cerca de 85% das pessoas estão nas cidades. O brasileiro vive hoje, em média, 20 anos a mais do que vivia na década de 50 do século passado. Ao contrário de 60 anos atrás, quando quase metade da população era analfabeta, hoje praticamente todas as crianças brasileiras estão na escola e apenas 12 bebês a cada grupo de mil nascidos vivos morrem antes de completar um ano. Em 1950, morriam 135.

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1950
Na inauguração do Maracanã, a uma semana do início da Copa,
arquibancadas ainda estavam cheias de andaimes

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2014
Por dentro o Maracanã está lindo, mas por fora as
obras de mobilidade continuam atrasadas

As profundas mudanças sociais e econômicas dessas seis décadas foram incapazes, no entanto, de transformar a maneira como o País lida com recursos públicos, gerencia obras de grande porte e como se prepara para eventos do tamanho de uma Copa do Mundo ou das Olimpíadas. Lá, como cá, os meses que antecederam a primeira partida do Mundial foram marcados por acusações de desvio de verbas, atrasos nas obras, improvisos nos estádios e uma permanente apreensão de que nem tudo estaria pronto para receber as 13 seleções que fariam a primeira Copa do Mundo de futebol desde 1938. Olhando em perspectiva a preparação para os dois mundiais, é fácil perceber que o Brasil, de fato, segue um padrão, ainda que bastante distante daquele proposto pela Fifa.

Tanto no Itaquerão como no Maracanã, os estádios
construídos para a abertura das copas de 2014 e 1950,
houve a promessa – não cumprida – de que não
haveria uso de recursos públicos em sua construção

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“Há duas semelhanças entre as duas preparações: os atrasos nas obras e a influência política”, diz o jornalista Diego Salgado, que, em conjunto com os também jornalistas Beatriz Farrugia, Gustavo Zucchi e Murilo Ximenes, acaba de publicar o livro “1950: O preço de uma Copa” (Editora Letras do Brasil). Nele, Diego e seus colegas recontam as histórias que marcaram os quatro anos de preparação para o Mundial. “Como em 1950, o Brasil de 2014 perdeu metade do tempo de preparação para começar as obras dos estádios e, também como em 50, o estádio de abertura só ficou pronto faltando poucos dias para a partida inicial”, diz ele, referindo-se ao Maracanã e ao Itaquerão.

Assim como os mais de 35 mil corintianos que assistiram à inauguração oficial do Itaquerão no dia 17 de maio, os mais de 100 mil cariocas que estiveram na primeira partida do Maracanã, em 17 de junho de 1950, também encontraram um estádio ainda em obras. Na partida inaugural do que até então era o maior estádio do mundo, boa parte das arquibancadas superiores estava tomada por centenas de andaimes que davam sustentação à famosa cobertura de concreto. Até aquele momento, apenas sete dias antes da abertura do Mundial, as 96 toneladas de cimento utilizado para cobrir as arquibancas não haviam secado ainda. Aqueles torcedores que optaram por se sentarem nas cadeiras azuis, entre a arquibancada e a geral, saíram do estádio com as calças manchadas de tinta. No entorno do estádio, muita sujeira, entulhos e obras inacabadas.

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1950
Palco da abertura e da final do mundial, Maracanã
foi alvo de intensa disputa política

A construção do Maracanã, a exemplo do corintiano Itaquerão, também foi marcada por um aumento exorbitante dos preços, intensas disputas políticas e a promessa de que pouco ou nenhum recurso público seria usado na obra. Por quase dois anos após a decisão de que o Brasil seria a sede da Copa de 50 governo e oposição travaram uma intensa luta para decidir se um novo estádio seria construído ou não. Carlos Lacerda, então vereador e membro da UDN, não queria um novo estádio. Seu temor era que a obra servisse como arma de propaganda política nas eleições presidenciais de 1950, que, como agora, aconteceriam três meses após o Mundial. “Houve muita crítica à construção do estádio com dinheiro público”, diz Antônio Holzmeister, historiador e antropólogo do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “E assim como agora, havia questionamentos sobre a razão de investir recursos no estádio e não em hospitais.”
Orçado para custar o equivalente a R$ 267 milhões, o Maracanã foi concluído com um atraso de mais de dois meses ao custo de mais de R$ 410 milhões em valores corrigidos. Havia a promessa também de que o estádio seria financiado com a venda de cadeiras cativas, mas a conta final ficou mesmo com o poder público. No caso do Itaquerão, a estimativa era de que o estádio sairia por pouco mais de R$ 800 milhões. Hoje a conta já passa do R$ 1 bilhão e pode subir ainda mais, com boa parte dela debitada dos cofres públicos.

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1950
Obra viária no entorno do Maracanã só ficou pronta após o final da Copa

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2014 – REPETIÇÃO
Em Cuiabá as obras de infraestrutura não ficarão prontas a tempo

As semelhanças entre 1950 e 2014 não ficam restritas apenas à construção dos dois principais estádios destas copas. Assim como agora, houve atrasos generalizados país afora, pressões da Fifa e ameaças aos organizadores. Em 1950 quem tinha a missão de cobrar a então Confederação Brasileira de Desportes (CBD) era o também secretário-geral da Fifa, o italiano Ottorino Barasi. Barasi, que havia ficado responsável por esconder a Taça Jules Rimet durante os turbulentos anos da Segunda Guerra Mundial, corria o país para vistoriar os estádios e exigir mudanças e ajustes. Em Minas, por exemplo, fez pedidos explícitos para que o Estádio Independência, construído especificamente para a Copa, sofresse alterações no gramado e passasse por um jogo teste antes da primeira partida do Mundial, entre Suíça e Iugoslávia.

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Imprensa temia que estádios não fossem concluídos no prazo

O Independência, assim como o Maracanã, preocupava a Fifa. Havia a possibilidade de as obras não terminarem a tempo. Em sua manchete do dia 5 de abril, por exemplo, o jornal “O Globo” foi categórico: “Não ficará pronto o estádio de Belo Horizonte para a Copa do Mundo”. Aos trancos e barrancos, ficou, mas o jogo teste exigido pelo Jérôme Valcke de 1950 jamais aconteceu e o Independência foi inaugurado com a vitória da Iugoslávia sobre a Suíça por 3 a 0.

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Fora dos estádios imperava um ufanismo estatal muito semelhante ao de agora. O Brasil do final dos anos 40 se assemelhava ao Brasil do final da primeira década do século 21. Havia a expectativa de que o país, enfim, estava entrando para o seleto grupo das nações ricas. Havia crescimento econômico generalizado, um vasto processo de industrialização e, nos anos 50, o Brasil caminhava de forma acelerada para se transformar em uma nação cada vez mais urbana e moderna. “O fim dos anos 40 e o início dos 50 são uns dos períodos mais importantes para a história do Brasil”, diz Alexandre Hecker, professor de história contemporânea da Universidade Mackenzie. “É quando tem início os principais projetos desenvolvimentistas, como o da indústria automobilística, por exemplo”, diz ele.


O Brasil vivia o que se mostrou ser apenas um hiato entre ditaduras. Não à toa, o governo federal, ainda fortemente influenciado pelo poderoso sistema de propaganda criado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, passou a usar a Copa do Mundo como um exemplo dos novos tempos que vivia o país. O lema daqueles tempos era de que a Copa de 50 seria o “Maior Mundial de Todos os Tempos”. Não muito diferente do que o governo de hoje, a despeito de todo o mau humor popular em relação aos gastos públicos com o Mundial, tenta fazer com o seu “Copa das Copas”.

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1950
Dentro de campo, a Copa do Mundo de 1950 foi um sucesso,
apesar da derrota trágica do Brasil na final

O processo de urbanização e industrialização pelo qual passava o país também criou tensões sociais nas grandes cidades, como ocorreu em 2013 Brasil afora. Como em junho do ano passado, uma rebelião popular tomou conta das ruas de São Paulo cerca de dois anos antes do início da Copa por conta de um aumento de 150% nas tarifas de bonde. Populares picharam muros, incendiaram bondes e depredaram lojas no centro de São Paulo para protestar contra o reajuste. A Companhia Municipal de Transporte Coletivo (CMTC) ganhou o apelido de “Custa Mais Trinta Centavos”.

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2014
No aeroporto de Belo Horizonte passageiros terão os tapumes como companhia

Mas é verdade também que a Copa de 50, ao contrário da de 2014, contou com um amplo apoio popular. O país estava em festa. “Havia um ‘senso de inclusão’, o povo participando da festa, o que hoje é um sentimento que não parece tão forte quanto naquela época, hoje a sensação é de que a Copa é um evento pra turistas estrangeiros”, diz o historiador Daniel Araújo Soares, professor do departamento de pós-graduação da Faculdade Damásio.

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O atraso nas obras da Copa de 50, como o que acontece agora,
não impediu que o mundial transcorresse sem problemas

Mesmo com todos os problemas, atrasos e improvisos, a Copa de 1950 no Brasil foi um sucesso, apesar do fim trágico naquele 16 de julho. Mais de 1 milhão de pessoas (808 mil apenas no Maracanã) assistiram aos 22 jogos daquela Copa, disputada em seis cidades-sedes. Não foram registrados incidentes ou confusões, nem mesmo na final que levou quase 200 mil pessoas ao Maracanã. “A Copa deixou como legado o Maracanã, que foi muito importante para o futebol brasileiro”, diz Soares. Diego Salgado, autor do livro sobre os custos do Mundial de 50, acha que um outro legado importante ficou para o país. “O Maracanaço mudou a história da seleção, que, inclusive, passou a jogar de amarelo a partir de 1954. O Brasil aprendeu com a derrota. O respeito ao adversário que faltou contra o Uruguai em 1950 sobrou diante da Suécia em 1958”, diz ele. A expectativa agora é de que o Brasil não precise de mais uma derrota em campo para aprender com os erros que cometeu fora dele.

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2014
Jérôme Valcke é o homem da Fifa para fiscalizar e cobrar que as obras terminem no prazo

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1950
O italiano Ottorino Barasi visitou as seis cidades-sedes
para checar se os estádios estavam no padrão Fifa

Fotos: Kleber Brum de Lemos/Blog do Carioca do Rio; Friedemann Vogel/Getty Images, Arquivo/Agência O Globo; Joel Silva/Folhapress, Nereu Jr/Fotoarena/Folhapress; Nelson Antoine/AP


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