Logo ao desembarcar na Terra Santa, na semana passada, o papa Francisco já emitia sinais de que pretendia levar de volta na bagagem mais do que demonstrações de fé. Numa tentativa de simbolizar as três religiões monoteístas que consideram Jerusalém a cidade sagrada, Francisco fez questão de levar com ele na viagem o rabino Abraham Skorka e o xeque Omar Abboud, dois amigos de Buenos Aires. Foi a primeira vez que um papa incluiu líderes de outras religiões em sua comitiva. Com a iniciativa, Francisco expôs o objetivo da viagem: provocar um impacto político num lugar onde o ódio inter-religioso prevalece há séculos. Ao encontrar Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, o esforço em influenciar os rumos da paz entre israelenses e palestinos ficou evidenciado. “Chegou a hora de colocar um ponto final nessa situação, que se tornou cada vez mais inaceitável”, disse.

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PRECE PELA PAZ
Depois de reconhecer a Palestina como um Estado, o papa Francisco
seguiu a tradição judaica em visita ao Muro das Lamentações:
orou e depositou um papel nas fendas da construção

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Sem porta-vozes, o papa fez um convite pessoal a Abbas e Shimon Peres, presidente de Israel, para irem juntos ao Vaticano orar pela paz, inaugurando uma nova dinâmica na diplomacia. “O papa Francisco mostra que as religiões, em vez de guerra e discórdia, como acreditam alguns, na verdade ajudam no processo de paz”, afirma Antônio Manzatto, da PUC-SP. “Essa foi uma grande tentativa de desbloquear as conversações políticas”, acrescentou. O encontro histórico, aceito pelos representantes de dois povos que brigam há mais de 60 anos, deve ser realizado no início de junho na modesta Casa Santa Marta, residência que acolhe religiosos do mundo todo no Vaticano e onde Francisco mora. “A viagem do papa ao Oriente Médio está de acordo com a mensagem que ele vem comunicando em homilias, discursos e catequeses sobre a alegria do Evangelho”, afirma Angela Zukowski, vaticanista e professora do Departamento de Estudos Religiosos da Universidade de Dayton, nos Estados Unidos. “Ele tem como alta prioridade a definição de um caminho para todos os povos trabalharem em conjunto pela paz e criar uma cultura do diálogo.”

A viagem aconteceu 50 anos depois do Conclave promovido pelo papa Paulo VI, o primeiro desde o grande cisma, com o objetivo de renovar o diálogo ecumênico entre a Igreja de Roma e a de Constantinopla, separadas em 1054. Para isso, Francisco se reuniu com Bartolomeu, patriarca ortodoxo, na Basílica do Santo Sepulcro, onde, segundo a tradição cristã, Jesus Cristo foi crucificado e sepultado. A peregrinação, que começou no sábado 24, também teve gestos simpáticos tanto à Palestina quanto a Israel. Da Jordânia, o papa partiu direto para a Cisjordânia, onde reconheceu a Palestina como um Estado. No domingo 25, interrompeu seu trajeto para rezar no muro de oito metros de altura construído pelos israelenses entre Belém e Jerusalém para segregar os territórios palestinos de Israel. Pintado de branco nos dias anteriores à visita papal, o local recebeu mensagens de protesto na véspera. Em uma delas, era possível ler em inglês: “Papa, precisamos de alguém para falar de justiça.” Em Jerusalém, ele visitou o túmulo de Theodor Herzl, fundador do Sionismo moderno, o memorial de Yad Vashem e pediu que um “pecado” como o Holo­causto não volte a acontecer. No Muro das Lamentações, seguiu a tradição judaica de depositar um papel com uma oração nas fendas da construção.

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HISTÓRICO
Encontro reuniu no domingo 25 o papa Francisco e o patriarca ortodoxo
de Constantinopla, Bartolomeu, na Basílica do Santo Sepulcro

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O simbolismo do encontro capaz de restabelecer a confiança entre os dois lados deve ser maior do que seu peso político, já que Israel será representado por Shimon Peres, a dois meses de encerrar seu mandato como presidente (por si só, um cargo mais simbólico do que administrativo). Salman Shaikh, especialista em Oriente Médio e diretor do Instituto Brookings de Doha, duvida que a ação possa ter resultados práticos, especialmente num momento em que o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, está focado em manter sua coalizão conservadora unida. Depois que o movimento islâmico Hamas (que não reconhece a existência de Israel como um Estado judeu) anunciou apoio à Autoridade Palestina há um mês, os parlamentares de sua base se recusaram a voltar à mesa de negociações. “Ainda assim, reunir as duas autoridades agora é um feito impressionante”, disse Shaikh à ISTOÉ. “É muito significativo que um papa queira se esforçar num tema tão complicado. Se ele conseguir algum impacto em destravar as conversas, será um ótimo candidato ao Nobel da Paz.”

Em abril, a tentativa mais recente dos Estados Unidos de mediar um pacto pela paz num prazo de nove meses terminou como um grande fracasso diplomático. Nas semanas anteriores à data-limite determinada pelo secretário de Estado americano, John Kerry, Israel anunciou a construção de 700 novos assentamentos na Cisjordânia e a imposição de sanções econômicas à Palestina em resposta à decisão unilateral dos palestinos de assinar 15 tratados internacionais. O canal para o diálogo, então, obstruiu-se. Dessa vez, os EUA, que desde 1993 promovem encontros entre as autoridades de Israel e da Palestina, disseram não ter relação com o convite do papa. Kerry limitou-se a dar as boas-vindas ao “apelo por esforços corajosos para alcançar uma solução de dois Estados.”

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Apesar da iniciativa inédita de o papa interceder no conflito entre Israel e Palestina, o papel da Igreja como ator da diplomacia é antigo. Em 1978, o papa João Paulo II enviou o cardeal Antonio Samoré para mediar a crise territorial entre Argentina e Chile sobre o controle das ilhas ao leste do Canal de Beagle, na divisa entre os oceanos Pacífico e Atlântico. A intervenção terminou com um acordo de paz em 1984. Compromissos históricos, como o Tratado de Tordesilhas, que dividiu a posse das terras da América entre Portugal e Espanha em 1494, também só foram assinados com a mediação da Santa Sé. Agora, com Francisco, a religião católica tem uma nova chance de restaurar seu peso no tabuleiro político internacional.

Fotos: Jim Hollander/EFE/EPA; Kobi Gideon/EFE


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