Foi um passo para trás. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) anunciou, há duas semanas, que se sensibilizara com as histórias das famílias obrigadas a adquirir ilegalmente um medicamento à base de canabidiol (CBD), composto da maconha, para tratar crises de epilepsia de crianças. Mais que isto: a agência indicou para estas famílias – e também em entrevistas de seus dirigentes à imprensa ‑ que passaria a autorizar a importação do remédio. Segundo a Anvisa, sua equipe técnica recomendava a mudança burocrática e havia consenso do colegiado de diretores sobre a necessidade de liberação, em nome da saúde pública. Nada disto era verdade. Na quinta-feira 29, a Anvisa bateu em retirada. Em audiência pública, o presidente da autarquia, Dirceu Barbano, que liderara a defesa da “eficiência” da decisão, passou a considerá-la “inócua”. Como se tivesse feito uma descoberta recente, argumentou que os remédios com canabidiol continuariam vetados porque contêm alguma porcentagem de THC e outros derivados de maconha.

A equipe técnica da Anvisa teria feito um trabalho ginasiano a ponto de desinformar Dirceu Barbano sobre o TCH da maconha? Não é o que ocorreu.

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SÓ FUMAÇA
Dirceu Barbano esqueceu suas convicções e o parecer técnico da Anvisa

ISTOÉ apurou que a cambalhota retórica de Barbano tem menos a ver com laudos científicos que seriam de sua responsabilidade e mais com questões políticas. A pressão para o recuo veio do topo. O Palácio Planalto, preocupado com a repercussão da decisão em ano eleitoral e de olho nos votos de eleitores conservadores, como os evangélicos, deu ordem direta para que nada fosse alterado agora. Barbano, diretor de uma agência reguladora com a missão legal de zelar pela “independência administrativa”, foi enquadrado a atender interesses eleitorais. Em audiência pública, frente ao espanto dos pais de doentes que acompanhavam a sessão, Barbano comandou a debanda a favor da proibição ao acesso dos medicamentos. Vendo que a votação do colegiado de diretores da Anvisa era encaminhada por Barbano para a supreendente reprovação do relatório técnico, um dos diretores, Jaime Oliveira, pediu vistas. Agora, o tema será reexaminado somente na primeira semana de agosto. Mas, como as eleições são apenas em outubro, é difícil que algo mude até lá.

Dirceu Barbano capitaneou a vitória do preconceito e da ignorância. Derrotados foram os milhares de brasileiros com doenças graves que poderiam ser tratadas com o canabidiol. “A quantidade dos outros componentes no medicamento é tão pequena que essa justificativa não se sustenta”, afirma Renato Malcher, professor do laboratório de neurobiologia e comportamento da Universidade de Brasília (UnB) e coautor do livro “Maconha, Cérebro e Saúde”. A pirueta de Barbano prejudica diretamente famílias com crianças acometidas diariamente com graves convulsões. A agência insiste que é possível importar o remédio em caráter excepcional, mas mesmo para isso é preciso de um pedido médico. “Que profissional vai querer prescrever a substância sabendo que a Anvisa é contra?”, questiona Katiele Fischer, 33 anos. Sua filha, Anny, 6 anos, é portadora da síndrome CDKL5. Sem o uso de canabidiol, ela sofre 80 convulsões por semana.

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LUTA
Katiele Fischer, mãe de Anny, 6 anos:
liminar para importar CBD e tratar a epilepsia da filha

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Mas Anny estará protegida, pois seus pais trataram de se garantir legalmente contra de decisões burocráticas de conveniência, tomadas ao sabor de interesses de uma agência reguladora aparelhada. Por meio de uma ordem judicial, Katiele e Norberto Fischer conseguiram que a Anvisa não proíba a importação do canabidiol de Anny, comprado nos Estados Unidos e usado para tratar a epilepsia da menina. Para a maioria das famílias, no entanto, só resta o caminho da ilegalidade. É o caso do médico Leandro Cruz Ramires da Silva, 50 anos, que compra ilegalmente o remédio para o filho Benício, 6 anos, portador da síndrome de Dravet, que também resulta em convulsões. Como vários outros pais na mesma situação, Silva está indignado. “Quem é a Anvisa pra impedir que meu filho use CBD? Eu vou continuar no crime, na ilegalidade, mas não vou deixar de zelar pela vida dele”, diz.

A missão legal da Anvisa, criada em 1999, e seus códigos de ética e conduta recomendam que ela “promova a saúde da população”, considere a “transparência dos atos” como um valor institucional, adote o “conhecimento técnico e científico como fonte de ação”, trabalhe com “princípios éticos”, seja imune a “preconceitos de cunho político” e “resista e denuncie todas as pressões de servidores hierárquicos”. A manobra da autarquia na quinta-feira passada varreu para debaixo do tapete todos estes princípios, por decisão de comissários convencidos de que sua maior missão, em benefício da nação, é manter os próprios empregos. A qualquer custo. A sujeição de princípios de saúde a interesses eleitoreiros deixou rastros ainda em outra área. Também na quinta-feira o ministro da Saúde, Arthur Chioro, foi convencido pelo Palácio do Planalto a alterar uma portaria que modificava a tabela do SUS para pagamento de aborto legal. Neste caso, pelo menos, ficaram evidentes as pegadas do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), notório big boss no jogo de cartas da Casa dos Deputados. Cunha admitiu ter procurado o ministro para a revogação do ato, considerado por religiosos “uma brecha para a interrupção da vida”. Resultado: assim como crianças com epilepsia, que se danem as vítimas de estupro.

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Fotos: FABIO RODRIGUES/POZZEBOM/ABR; Adriano Machado


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