É brasileiro o teórico latino-americano mais cultuado hoje em universidades dos continentes americano e europeu. O educador pernambucano Paulo Freire, criador em 1962 de um revolucionário método de alfabetização que leva seu nome, é hoje a marca de qualidade de cátedras em universidades de pelo menos dez países. Seu nome reúne normalmente mais de mil participantes em congressos dedicados aos temas de educação, eventos internacionais que, desde sua morte em maio de 1997, se repetem quatro, cinco vezes ao ano. Os “freirianos”, como se intitulam com orgulho seus seguidores, celebram as teses do mestre em inglês, espanhol, italiano, francês, sueco e português – com sotaque de Portugal, na maioria das vezes.

Reconhecimento igual ao observado hoje no Exterior não se vê no Brasil. Isso é facilmente constatável para quem trabalhou com o mestre e conhece de perto a intrincada rede de vaidades que domina nosso universo acadêmico. “Em geral, as universidades brasileiras não valorizam e não dão importância merecida a Paulo, porque o consideram antiquado. Para eles, por incrível que pareça, o Paulo já era…”, observa com pesar a viúva do mestre, prestigiada historiadora em educação, Ana Maria Araújo. E por quê? “A proposta de Paulo é humanista e o que vale hoje, em nosso país, é a ética de mercado”, responde prontamente a vigorosa senhora, que conversou com ISTOÉ durante o VIII Simpósio Internacional de Educação Cátedra Paulo Freire, que reuniu 1,5 mil participantes (uns dez brasileiros, apenas) no Instituto Tecnológico de Estudos Superiores de Occidente (Iteso), universidade jesuíta sediada em Guadalajara, México.

Bê-á-bá – Por “humanista” entenda-se que a didática proposta por Freire se baseia na importância de o aluno conhecer o seu mundo, mais além do que ler, decorar e entender cada letra, cada palavra. Ele classificou de “educação bancária” os convencionais métodos de alfabetização e ensino bê-á-bá que unicamente instruem o estudante a decorar associações de consoantes e vogais e posteriormente reconhecer palavras, ler, memorizar significados, construir vocabulário e escrever. Para Freire, a educação deve incluir as necessidades pessoais dos alunos, considerando hábitos culturais e a vida comunitária.

Na madrugada anterior à sua viagem ao México, Ana Maria acabara de contribuir para mais um capítulo da extensa obra do marido. Ela organizou uma compilação de cartas e ensaios de Freire sobre o Descobrimento – ou a “invasão” – do Brasil, a ser lançado em maio, durante a Bienal do Livro, em São Paulo, pela Editora Unesp (leia quadro à pág. ao lado). O novo livro tem sugestivo título – Pedagogia da indignação. Não é para menos. Antes da Bienal, porém, a incansável senhora Freire poderá embarcar para Bolonha, Itália, a fim de prestigiar a inauguração de mais uma cátedra Paulo Freire no Exterior. Em maio, outra cátedra vai ser inaugurada, dessa vez em Cienfuegos, Cuba. Agenda cheia até setembro, quando se realizará outro congresso internacional dedicado ao brasileiro em Évora, Portugal. Até lá, devem avançar os acertos para a criação de uma fundação Paulo Freire em Nova York, projeto capitaneado por Stanley Aronovitz, um dos mais prestigiados educadores dos EUA da atualidade.

Muito facilmente no Brasil se cobre de aplausos a teoria por vezes bizarra de um intelectual de fora. E, com o passar do tempo, se ignora ou se subestima a prata da casa. Tom Jobim acrescentava, sabiamente, que os brasileiros se incomodam com o sucesso de patriotas, ainda por cima em se tratando de gente capaz de construir prestígio internacional. Com a defesa de uma “educação libertadora”, Freire foi um dos raros intelectuais do chamado Terceiro Mundo a impor sua obra nos exigentes círculos acadêmicos dos países desenvolvidos. Publicou 25 livros, traduzidos em 35 países. Sua obra mais conhecida – Pedagogia do oprimido – foi traduzida em mais de 17 idiomas, com 27 edições em inglês, 35 em espanhol e 17 em português. Espalhados pelo mundo, existem quase seis mil livros e artigos sobre Paulo Freire e quase 1,5 mil títulos de trabalhos referentes ao educador.

O brasileiro foi professor em várias universidades e coordenou seminários e conferências em dezenas de instituições americanas, européias, africanas, australianas, neozelandesas e asiáticas. Assessorou os governos de diversos países da América Latina, Ásia e África, particularmente dos novos países africanos de língua oficial portuguesa – Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola. Foi secretário municipal de Educação de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina.

Carisma – Também bateu recordes. É o brasileiro com maior número de títulos de doutor honoris causa, premiação máxima concedida por grandes universidades: foram 40 títulos outorgados por instituições dos EUA (incluindo Harvard), Canadá, Inglaterra, Bélgica, Suíça, Itália, Espanha, Portugal, Suécia, Bolívia, Alemanha e Argentina. No Brasil logrou 12 títulos desses. Ao todo, foram 36 doutoramentos em vida, quatro in memorian. A Universidade de Cuba também faria parte da extensa lista: Freire e Ana Maria, “Nita”, estavam de malas prontas e partiriam de avião de São Paulo, onde viviam, rumo à ilha de Fidel na manhã de 3 de maio de 1997. Na madrugada anterior, dia 2, Freire faleceu repentinamente. Contava 75 anos, dois casamentos.

Freire conquistou tanta gente porque foi capaz de falar daquilo que é fundamental para todo ser humano: amor. Foi um intelectual carismático, que buscou nutrir fortes relações interpessoais. Para ele, um professor deve ser capaz de ensinar, mas também de aprender com as experiências trazidas pelos alunos para a sala de aula. “Para que, porém, quem sabe possa ensinar a quem não sabe, é preciso que, primeiro, quem sabe saiba que não sabe tudo; segundo, que quem não sabe saiba que não ignora tudo”, instiga Freire. A relação com os alunos deve ser, para ele, uma via de mão dupla, no mesmo nível, nunca de cima para baixo nem de baixo para cima. Ele acreditava no diálogo para transformar os homens, para educá-los.

Diálogo – A importância do “Método Paulo Freire” ficou patente nas primeiras experiências de alfabetização realizadas em 1962 na cidade de Angicos, Pernambuco, quando 300 trabalhadores rurais foram alfabetizados em apenas 45 dias. “O papel do educador é fundamentalmente dialogar com o analfabeto”, repetia Freire. Por negar a primazia da objetividade, foi duramente criticado por marxistas. Por pregar a democratização da educação, era paradoxalmente tachado de “marxista” pela direita brasileira na época da ditadura. Freire foi leal a suas próprias convicções. “Exigente com a ética, considero que ela tem a ver com a coerência com que se vive no mundo, entre o que se diz e o que se faz.”