"Ouso do nome Messalina como sinônimo de mulher pérfida e viciada em sexo é o exemplo mais óbvio de como a imagem das imperatrizes romanas eternizada nos textos históricos pode estar impregnada de cores fortes – para não dizer, de estereótipos. Não se sabe com exatidão, por fontes primárias, o verda deiro perfil dessas consortes, embora o temperamento traiçoeiro tenha prevalecido em seus retratos. Um exemplo recente é lembrado pela historiadora inglesa Annelise Freisenbruch, autora de “As Primeiras-Damas de Roma” (Record). Na série “Roma”, do canal HBO, o personagem mais cruel na galeria de déspotas e assassinos é Ácia, sobrinha de Julio César. Pelo pouco que se conhece, era mãe devotada e correta para o filho Otaviano. No seriado, contudo, ela foi apresentada como figura sagaz e sedutora, totalmente amoral.

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SANGUE E BELEZA
Cena do seriado "Roma", que retrata o poder feminino na Cidade Eterna

O propósito de Annelise é justamente iluminar com análise contemporânea essa imensa galeria feminina para, na impossibilidade de desfazer equívocos, pelo menos dar subsídios sociais e antropológicos para uma justa avaliação.

Projeto difícil, sabe-se. Como amenizar as cores usadas para descrever, por exemplo, a citada Messalina, mulher de Claudio, chamada pelo satírico Juvenal de “Meretrix Augusta” (sua alteza, a meretriz)? Figura principal do capítulo “As Bruxas do Tibre”, ela é apresentada como “um prodígio carnal que nenhum trunfo ou título era capaz de transformar numa matrona respeitável”. Para saciar o seu desejo, esperava o marido dormir, punha um capuz sobre a peruca loira e se dirigia a um prostíbulo onde tinha cubículo privado. “Então, lá ficava, nua e à venda, com os mamilos dourados, sob o pseudônimo de Loba”, escreve Juvenal. Outras fontes a mostram como incentivadora do adultério, conclamando mulheres nobres a fazer o mesmo. Teria até desafiado uma prostituta em maratona sexual, saindo vencedora depois de satisfazer o 25º amante. Segundo a autora, que se alinha num esforço historiográfico iniciado nos anos 1970, a identidade das primeiras-damas de Roma foi vítima de escritos feitos a partir da história e da reputação política dos imperadores, assim como pela reação crítica aos seus governos. Entre os arquétipos recorrentes, as mulheres dos césares são ora madrastas conspiradoras, caso de Agripina, mãe de Nero, ora esposas sofridas, a exemplo de Claudia Otávia, primeira mulher do mesmo governante, que se divertia matando estranhos nas vielas da Cidade Eterna.

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A LOBA
Messalina, na Tela de Hans Makart: traição ao marido,
Claudio, em um prostíbulo onde tinha cabine privada

Cobrindo cinco séculos, desfilam pelas páginas do livro beldades como Julia, a filha de Augusto que se embebedava no fórum e promovia orgias na tribuna, ou Popeia, a segunda mulher de Nero, que o levou a matar a mãe, Agripina, para ser aceita na corte. A viúva negra Agripina, aliás, fazia parte do “trio perigoso” que incluía Messalina e Lívia, apelidada de “Ulisses de saia” pelo seu bisneto Calígula. Primeira imperatriz, companheira de Augusto, Lívia abre o relato de atrocidades: teria eliminado com indiferença inumana todos os adversários do filho Tibério. Também no seu caso as versões contrastantes se multiplicam.

O historiador Tácito a apresenta como uma tirana ingovernável; para o poeta Ovídio, ela era mãe casta, com beleza de Vênus; fortaleza estoica em face do luto para o filósofo Sêneca. Mestrada em poções, cai-lhe bem a advertência de um contemporâneo: “Abastados órfãos sem pai, eu os alerto – temam por suas vidas e não confiem em um único prato. A fumaça escura que sai daquelas massas é o veneno.”

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Fotos: Divulgação/ HBO