Eram 18h30 do sábado 26, numa rua pouco movimentada de Santo André (SP). O médico Ricardo Assanome, 27 anos, escolheu esse horário para evitar tumultos no momento de lavrar um boletim de ocorrência por causa de um pequeno acidente que arranhou seu carro. Junto, levou a namorada, Cintia Akemi, com quem planejava se casar no fim do ano. Enquanto ele aguardava o registro, um policial militar à paisana entrou correndo na delegacia para escapar de um assalto. Em meio ao caos que se seguiu, o policial civil André Bordwell da Silva, 38 anos, pensando se tratar de uma tentativa de invasão, atirou contra inocentes, atingindo na cabeça Assanome, que morreu no dia seguinte. Na confusão, o próprio Bordwell recebeu um disparo no peito feito pelo colega Akiyoshi Honda e um terceiro homem foi baleado, mas passa bem. Houve pelo menos dez tiros no distrito.

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CAOS
Delegacia de Santo André, no sábado 26, onde policiais assustados
dispararam dez tiros após um PM à paisana entrar
correndo no local, fugindo de um assalto

Bordwell, que se recupera na UTI, foi indiciado por homicídio com intenção de matar e será preso quando sair do hospital. “Essa tragédia sintetiza todos os dramas da segurança pública no País. O da população, que não tem proteção do Estado nem dentro do distrito; o dos policiais, que trabalham sob enorme tensão; e o dos procedimentos da polícia, que precisam ser revistos”, afirma o sociólogo Renato Sérgio de Lima, pesquisador da Fundação Getulio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O policial se juntou à corporação há oito anos e é descrito por colegas como um funcionário dedicado. Casado e pai de dois filhos pequenos, encontra-se abalado psicologicamente, segundo familiares. Apesar de possuir um cargo técnico, de agente de telecomunicações, realizava eventualmente trabalhos na rua – o que é revelador da falta de efetivo da corporação. Para especialistas, o treinamento falho ajudou a consolidar o desastre. “Algumas pessoas saem da academia sem dar um tiro”, diz João Batista da Silva Neto, presidente do Sindicato dos Investigadores de Polícia de São Paulo. Policiais contam ainda que é possível passar anos sem novos cursos, uma vez que eles não são obrigatórios. As requalificações são importantes para manter a pontaria e controlar os ânimos numa situação de estresse. Esse fator pode ter sido decisivo, pois circula no meio a informação de que a facção criminosa PCC planejava um ataque à delegacia – o que não foi confirmado pela Secretaria de Segurança Pública. O órgão rebate as críticas informando que, apesar de a reciclagem só ser mandatória em caso de promoções, 23 mil homens já atuantes foram treinados este ano, 1,2 mil deles em armamento e tiro.

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TRAGÉDIA
O enterro de Ricardo Assanome (abaixo), morto por um policial que tinha
função técnica, mas ficava armado na delegacia e, às vezes, ia para a rua

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Para José Vicente da Silva, coronel da reserva da PM, Bordwell não deveria estar armado. “Auxiliares técnicos são considerados policiais, mas não têm preparo para isso”, diz. Rosely Guido, secretária-geral do Sindicato dos Trabalhadores em Telemática Policial de São Paulo, discorda: “Nossa categoria passa pelo mesmo curso das demais.” Todos concordam num ponto: é preciso capacitar melhor os policiais.

Fotos: Mario Angelo/Sigmapress/Folhapress; Renato Mendes/Futura Press/Folha