1973. Exilado em um convento nas colinas da vila francesa de L´Arbresle, Tito de Alencar Lima, o frei Tito, volta seu corpo frágil em direção ao vilarejo do outro lado do vale e diz ao amigo, prostrado ao seu lado: “Ouço gritos vindos de lá. São do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Ele está torturando meus irmãos e prometeu que vai terminar pela minha mãe.” Fleury estava no Brasil, assim como a família de Tito. Mas sua voz ainda ecoava na mente do religioso. Ouvir suas ameaças não era loucura, nem paranoia, nem alucinação. Foi a maneira encontrada pelo dominicano envolvido com a resistência à ditadura de expressar a violência e a destruição psicológica sofrida durante sessões pungentes de tortura, a primeira comandada por Fleury, então do Dops, em 1969, e a segunda, pela equipe do capitão Benoni de Arruda Albernaz, da operação Bandeirantes, em 1970. Pouco menos de um ano depois, Tito, ainda sufocado pelas lembranças de terror, amarrou uma corda a um álamo, pendurou-se e morreu enforcado. Em seu quarto, seu amigo, o frade francês Xavier Plassat, o mesmo que estava com ele no momento já descrito, encontrou uma anotação: “É melhor morrer do que perder a vida”.

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EXÍLIO
Frei Tito em 1974, ano de sua morte, durante viagem pelos alpes franceses;
abaixo, reprodução de carta enviada ao colega de convento Magno Vilela

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2014. Passados 40 anos da morte do frade e 50 do início da ditadura, a trajetória de um dos personagens mais emblemáticos da truculência do regime militar é contada no livro “Um Homem Torturado – Nos Passos de Frei Tito de Alencar” (Civilização Brasileira). Entre as mais de 30 entrevistas feitas pelas autoras Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles está o relato inédito do psiquiatra francês Jean-Claude Rolland, que acompanhou Tito em seus últimos momentos. Ao se deparar com o frei em um quarto de hospital, em 1973, quando de sua primeira internação, o médico cogitou classificar seu problema como sendo um delírio alucinatório. Tito estava encostado em uma parede com os braços abertos, como se estivesse esperando para ser assassinado. “Estou pronto”, disse. Com o tempo, porém, Rolland chamou seu quadro de “sintoma-testemunho”. Ele queria expressar seu sofrimento, e a única maneira que encontrou foi dramatizando o que vivera. “Penso que (Tito) desmoronou quando foi escolhido para ser trocado pelo embaixador, como se a prisão o protegesse contra uma espécie de desejo de morrer”, afirma Rolland no livro, referindo-se à libertação do frei em troca do diplomata suíço Giovanni Enrico Bucher e à posterior mudança do Brasil para a França.

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ALGOZ
O delegado Sérgio Fleury, que torturou Tito pela primeira vez e foi
um fantasma na vida do frei em seus últimos momentos

 

Tito foi preso em 1969 na operação Batina Branca (leia no quadro abaixo). Seu pecado: com outros frades dominicanos, colegas no Convento das Perdizes, em São Paulo, dava apoio logístico à Aliança Libertadora Nacional (ALN), comandada por Carlos Marighella, um dos maiores nomes da guerrilha na época. “Ajudávamos a esconder militantes perseguidos e a mandá-los para fora do País”, diz frei Oswaldo Rezende, que conviveu com Tito até 1969 no Brasil e depois o reencontrou na França. “Não havia outra opção. À medida que a ditadura começava a ter um caráter extremamente repressivo, crescia a ideia de que só tinha uma saída, a luta armada”, afirma Ivo Lesbaupin, ex-frei e também colega de Tito. Progressistas, os dominicanos acreditavam na interpretação do “Evangelho” em favor da justiça social. “Não pegamos em armas, mas dar apoio a quem precisava nos parecia o caminho para combater a violência da ditadura.” No livro, fica evidente, porém, que Tito foi um dos primeiros a apontar as falhas no projeto revolucionário. “Ele era muito questionador. Via os limites da revolução popular e apontava a falta de adesão do povo”, diz Clarisse Meireles.

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A lembrança que frei Oswaldo tenta guardar de Tito é a dos anos do convento. “Ele era alegre, tínhamos boas conversas”, diz. “No exílio, quando nos reencontramos, já não o reconhecia. Havia algo de diferente em seu olhar.” A segunda vez que passou pela tortura, sob o comando do capitão Albernaz, o abalou ainda mais. Entre os freis, foi o único a ter duas temporadas de sevícias. Mas, como aponta o psiquiatra Jean-Claude Rolland e concordam os seus antigos colegas, o fato de sair do Brasil foi o motivo decisivo para desestabilizá-lo. “Ele sentiu o afastamento do País mais do que todos nós exilados. Queria voltar de qualquer jeito”, afirma frei Oswaldo. Mesmo à distância, continuava militando. Segundo a autora Leneide Duarte-Plon, mantinha a imprensa informada e constantemente dava testemunhos sobre a tortura sofrida. Volta para 1970: em dado momento, durante os três dias de castigos na Operação Bandeirantes, Albernaz manda Tito abrir a boca para receber a hóstia consagrada e coloca um fio para que o frei tome choques elétricos. Dizia que, se Tito não falasse, seria quebrado por dentro. E foi. Cinco décadas depois, assim como o terror da tortura ecoou na mente de Tito, sua trágica experiência reverbera na história do Brasil. Para que não se repita mais.


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