Um único julgamento e 529 condenações à pena de morte. Em menos de duas horas (ou 14 segundos para cada sentença), o tribunal de Minia, no Egito, deu na segunda-feira 24 o veredicto máximo aos acusados de atear fogo a uma delegacia durante um protesto em agosto do ano passado. No incêndio, um policial morreu. Os manifestantes declaravam seu apoio a Mohammed Mursi, presidente ligado à Irmandade Muçulmana que havia sido deposto por um golpe militar um mês antes. Enquanto do lado das autoridades uma vida foi perdida, organizações locais de defesa dos direitos humanos estimam em 632 o número de mortos pela reação violenta dos policiais. “A sentença destaca o fato de que nenhum tribunal egípcio tenha alguma vez questionado um único policial pela morte de mais de mil manifestantes, em grande parte pacíficos, desde 3 de julho”, disse, em nota, Sarah Leah Whitson, diretora para o Oriente Médio da ONG Human Rights Watch.

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CASTIGO
Acusados de terrorismo e conspiração, jornalistas da rede Al Jazeera (acima)
esperam julgamento no Cairo. Abaixo, o verdadeiro comandante
do Egito: Abdul Al-Sisi, ex-chefe das Forças Armadas,
que liderou o golpe militar em 3 de julho de 2013

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A proporção de condenados e vítimas supera até mesmo a histórica retaliação do ditador nazista Adolf Hitler aos italianos no Massacre de Ardeatine, de 1944. Depois de um ataque guerrilheiro a um grupo de oficiais da SS, a polícia nazista, em Roma, Hitler ordenou o assassinato de 50 italianos para cada alemão morto. A revanche terminou com 335 vítimas. A condenação coletiva da semana passada é alarmante inclusive para os padrões da Justiça egípcia. De acordo com o jornal “Ahram”, o principal do Egito, entre 1981 e 2000 709 pessoas foram condenadas à morte em cortes civis – destas, 249 foram executadas. Considerando só os últimos anos, o levantamento mostra que, em 2010, os condenados à morte foram 136. Em 2011, 115; em 2012, 91. O massacre do estádio Port Said, em que 74 torcedores morreram durante um jogo de futebol, resultou em pena de morte para 21 pessoas em março de 2013. “O veredicto é claramente um constrangimento para o governo interino do Egito, especialmente quando ele é dirigido por um ex-juiz da Suprema Corte Constitucional – na verdade, seu ex-chefe”, escreveu ao site Al-Monitor o ativista egípcio Wael Nawara, em referência ao atual presidente do país, Adly Mansour.

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PROTESTO
Manifestante pró-Irmandade Muçulmana atira fogos durante confronto
com a polícia na quarta-feira 26. Para muitos estudantes, o julgamento foi injusto

Embora Mansour seja o líder do poder executivo, é nas mãos do ministro da Defesa, Abdul Fattah Al-Sisi, que está a tomada das principais decisões. Líder do golpe militar de julho, Al-Sisi é visto como um homem forte e, por isso, segue como uma figura popular no país. Na quarta-feira 26, contudo, milhares de estudantes protestaram contra o marechal e o julgamento de Minia. Para Salem Nasser, coordenador do Centro de Direito Global da Fundação Getulio Vargas, de São Paulo, a decisão do júri é uma demonstração de que o Egito voltou, pelo menos em termos institucionais, ao que era sob o regime de Hosni Mubarak, derrubado em 2011 em decorrência das manifestações da Primavera Árabe. “As mudanças mais significativas ocorreram no tecido social”, diz. “O grande temor de expressar qualquer crítica ao governo parece ter sido esquecido depois que as pessoas descobriram as ruas.” Na semana passada, Al-Sisi renunciou à chefia das Forças Armadas para concorrer à eleição presidencial, esperada para o primeiro semestre deste ano. Sua vitória é dada como certa. Em 2012, a eleição de Mursi por uma pequena margem de 800 mil votos sobre Ahmed Shafiq, ligado ao antigo regime, mostrou que o Exército ainda encontra grande respaldo da população num país tão polarizado.

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Desde que recuperaram o poder, os militares classificam a Irmandade Muçulmana como um grupo terrorista e a colocaram na clandestinidade, iniciando uma perseguição semelhante à que seus militantes sofreram nos anos 50. Uma série de abusos aos direitos humanos foi catalogada pelo instituto Carnegie Edowment for International Peace, de Washington. Entre 3 de julho e 31 de dezembro, mais de 16 mil pessoas foram detidas em atos políticos e outras 2.590, vinculadas à Irmandade e a outras organizações islâmicas, foram presas como lideranças políticas. Nas próximas semanas, o líder supremo do grupo islâmico, Mohammed Badie, será julgado ao lado de 682 seguidores e de um grupo de jornalistas da rede árabe Al Jazeera, acusados de conspiração. Ainda que a lei local determine que as penas de morte sejam automaticamente apeladas, a condenação em massa de Minia já tem efeito quase tão certo quanto perigoso: a radicalização dos jovens islâmicos.

Fotos: Mohammed Abu Zaid/AP Photo; Stringer/REUTERS; KHALED DESOUKI/AFP PHOTO