Quando a pílula anticoncepcional foi lançada, em 1960, a mulher se viu livre para separar a reprodução do desejo sexual. Quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor, em 2006, ela viu seus direitos serem aumentados para protegê-la da violência. Estamos em 2014, e não há remédio nem lei para dar fim a valores morais tão opressores quanto os mostrados pela pesquisa “Tolerância Social à Violência contra as Mulheres”, divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na quinta-feira 27. Os números denunciam uma sociedade que ainda submete o sexo feminino a um papel menor e limitado. Segundo o estudo, 65% dos entrevistados concordam que a mulher que usa roupas que mostram o corpo merece ser atacada – como se fosse uma punição por não seguir um padrão. Além disso, 58% acreditam que, se elas soubessem se comportar, haveria menos estupros. São dados que mostram que, apesar de todas as conquistas dos últimos anos, o sexo feminino ainda é oprimido por um modelo de comportamento. Essa mentalidade medieval é o maior entrave para o enfrentamento da violência sexual e, pior, dá margem para que crimes continuem a ser cometidos – vide a onda de ataques de encoxadores nos metrôs brasileiros nas últimas semanas.

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Os números do estudo servem para mostrar que, se por um lado as
mulheres deram passos importantes em favor dos seus direitos,
por outro ainda há muito para ser conquistado

Vale apontar que o machismo gritante mostrado na pesquisa não é uma característica majoritariamente masculina. Para o levantamento, foram ouvidas 3.810 pessoas em todas as partes do Brasil. Entre elas, 66,5% eram mulheres, muitas delas mães que estão educando seus filhos, reproduzindo o discurso que denigre sua própria condição. “No fundo, muitas assumem essa ideologia machista de que precisamos estar presas, contidas. É uma mentalidade de colonizado”, afirma a advogada Leila Linhares Barsted, coordenadora executiva da ONG feminista Cepia. Para Leila, os resultados evidenciam outros dois grandes problemas. Primeiro em relação ao preconceito. “A mulher não é livre, não pode vestir o que quer e nem ir aonde quiser. Precisa estar em casa, ao lado de um marido ou de um pai”, diz. “Caso contrário, é julgada, ou pior, atacada.” Segundo, porque é um sinal de que também a conduta masculina é estigmatizada. Como se os homens, por natureza, não conseguissem se controlar.

Diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, Rafael Osório, um dos realizadores da pesquisa, afirma que, dos dados positivos, destaca-se o fato de 90% das pessoas acreditarem que o homem deve ser preso quando bate na mulher. Porém, mesmo nesse caso, há uma distinção entre a que segue e a que não segue o padrão. “Aquela que não merece violência física é a mãe, a irmã. A que está sujeita à proteção dos homens da casa.” Um pensamento equivocado que dá a entender que, dentro do seu lar, o perigo não existe. “Mas precisamos lembrar que há uma grande parte de vítimas estupradas por seus familiares”, diz Leila. Se por um lado a maioria concorda com a prisão do homem em casos de agressão, uma mesma maioria acredita que a violência em casa deve ser resolvida com os membros da família. “Mas no âmbito privado há sempre uma pressão para que a família seja mantida, mesmo que para isso a esposa tenha de suprimir seu direito individual”, afirma Leila.

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Os vários números que evidenciam o problema do preconceito servem para mostrar que, se por um lado as mulheres deram passos importantes em favor dos seus direitos, por outro ainda há muito para ser conquistado. “Ainda somos barradas na representação política, somos vistas por uma parcela da sociedade como cidadãs de segunda classe, merecedoras de punições”, diz Leila. “Precisamos avançar no campo dos valores, que não só são arcaicos, mas assumiram uma conotação de chancelar a violência contra a mulher.” Reduzir os números, portanto, vai depender diretamente de quanto diminuirá a ignorância da sociedade.

Foto: Blend Images/Getty Images