O coronel da reserva Paulo Malhães, 75 anos, o homem que deixou o País estarrecido com os depoimentos dados à Comissão da Verdade, por ser o primeiro militar de alta patente a admitir ter torturado, matado e ocultado cadáveres de presos políticos durante a ditadura militar (1964-1985), hoje mistura arroubos de violência e, ao mesmo tempo, um comportamento de aposentado tradicional. Sentado na varanda de sua casa, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, Malhães disse à ISTOÉ que atira sem dó em quem tentar usar drogas perto da residência. “Se vier vender ou fumar maconha na minha cerca, eu sento o dedo (atiro) mesmo. Sempre foi assim”, disse. O portão a que ele se refere é o muro que cerca os 19 mil metros quadrados de área, onde ele vive com a quinta esposa, Cristina, de 36 anos. Em contraste com o seu perfil, o ex-torturador é capaz de falar, quase candidamente, nos cuidados que dedica a seu orquidário com 200 espécimes, e a seus três cães, tratados com um carinho que não combina em nada com o passado do militar. A casa é simples, antiga, com paredes descascadas e infiltrações. Malhães diz que seu “soldo é pequeno” e não permite uma reforma. No embalo das críticas, xinga os rumos que o País tomou na democracia. “Eu nunca podia pensar que o próprio Exército ia entregar o comando do País de volta (aos civis). Podia entregar para um sucessor tranquilo, como o (Paulo) Maluf, que era o nosso candidato. Mas quando entregaram à oposição (Tancredo Neves) e desfizeram o sistema de informações, me senti mais ou menos traído”, disse em entrevista exclusiva à ISTOÉ.

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A FACE DA REPRESSÃO
Paulo Malhães, na varanda de sua casa, revelou que
não gostava de interrogar homossexuais e mulheres.
"Porque eles não entregam o macho deles. Ao contrário do homem."

Na avaliação do coronel, os generais que se faziam de “brabos” nos anos de chumbo se revelaram uns “frouxos”, depois. “Antigamente, os generais eram leões, de tão machos e tão violentos…Hoje os vejo como ratos no buraco.” Já ele, segundo sua própria definição, continua leão. Sob anonimato, pessoas da vizinhança afirmam que Malhães chegou a liderar um grupo de extermínio na região. “O coronel andava a cavalo pelas ruas, patrulhando. Quando os viciados o avistavam, fugiam tremendo, porque ele matava mesmo” contou um velho conhecido. Hoje, as limitações físicas já não permitem performances como essas. Malhães usa um andador para se locomover devido a dores fortes no nervo ciático.

Na conversa com a reportagem de ISTOÉ, Malhães se atribui enorme importância ao se dizer em condições de afirmar até que os presidentes militares sabiam o que acontecia nos porões da ditadura. “O Médici (general Emílio Garrastazu Médici – 1905-1985) era um dos que sabiam de tudo. Quando ele tinha dúvida, me chamava e perguntava. E eu contava”, afirmou. De repente, ao começar a discorrer sobre os crimes do passado, o coronel elabora uma reflexão em voz alta: “Por que matar e não entregar o corpo? Porque o fato de o cara desaparecer é mais incisivo do que mostrar o cadáver. Morreu , acabou, esquece. Mas quando some, fica aquela situação: cadê o fulano? Até hoje tem essa repercussão. Não vão achar nunca, mas fica essa esperança”, exemplificou, se negando a citar nomes.

A abrupta reflexão de Malhães, em meio às revelações sobre o passado, talvez se justifique pelo que ocorreu durante a última semana envolvendo o seu nome. Na quarta-feira 26, Malhães apresentou versões contraditórias sobre depoimento prestado à Comissão Nacional da Verdade (CNV), recentemente. Primeiro, disse que tinha desenterrado os ossos do deputado Rubens Paiva, morto em 1971. Depois, afirmou que não faz a menor ideia de quem eram os restos mortais que encontrou.

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"Se aparecer um maconheiro em frente à minha casa, eu atiro"

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Especificamente sobre as torturas, de maneira geral, o coronel teceu sua gélida lógica: “A tortura não existe para o soldado. Se você me combater fardado, tem direito às leis da Convenção de Genebra, não posso te torturar. Mas se você combate misturado na população, não tem esse direito.” Segundo Malhães, os militares somente venceram o que chamou de guerra porque cooptaram muitos presos políticos, aos quais se refere como “infiltrados”. “O sujeito era preso e eu analisava o caráter e as fraquezas dele. Então, cantava ele para trabalhar para a gente. Isso tinha que ser feito em um espaço de tempo muito pequeno para o pessoal de fora não sentir falta dele. Aí, devolvia para a rua.Se ele cumprisse o primeiro contato comigo, que a gente chamava de ‘ponto’, a parada estava ganha. Graças aos infiltrados conseguimos destruir todas as organizações”, gabou-se à ISTOÉ. Dentro do mesmo contexto, ele revelou ainda que não gostava de interrogar homossexuais e mulheres. “Porque eles não entregam o macho deles. Ao contrário, homem, no primeiro tapa já dedura a companheira.” À atividade no Exército, apesar de, na época, incluir tortura e morte, o coronel conferiu um tom romântico: “Isso é um trabalho pelo qual você se apaixona.”

Numa espécie de desabafo, Malhães revelou os motivos que o levaram a contar parte do que sabe sobre os crimes cometidos por militares na ditadura. “Como se passaram 50 anos achei que estava na hora de o Brasil conhecer uma história que esteve escondida por tanto tempo”. Questionado se não temia ser punido, o coronel demonstrou tranquilidade. “Estou velho demais para ir para a cadeia. Não vai acontecer nada comigo porque sou considerado incapaz”, explica. Ao avaliar a Comissão da Verdade, Malhães debocha. “Chamo de ‘Comissão da Meia Verdade’ porque tratam somente da metade dos envolvidos. Sobre os sequestros e assassinatos dos subversivos a Comissão não quer saber. Só quer saber do que nós (militares) fizemos”.

Fotos: Rudy Trindade


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