Uma das mais antigas batalhas judiciais que envolvem o mundo empresarial teve um desfecho surpreendente na semana passada. Depois de um processo que se arrastava há 20 anos, o Supremo Tribunal Federal condenou a União a indenizar a Varig pelas perdas provocadas pela política de congelamento de preços durante o Plano Cruzado, de outubro de 1985 a janeiro de 1992. A fatura será de no mínimo R$ 3 bilhões, mas pode chegar a R$ 6 bilhões. Ex-funcionários que estavam na ativa quando a Varig faliu, em 2006, e foram demitidos sem receber direitos trabalhistas são os primeiros da fila para ressarcimentos. Também deverão ser beneficiados pilotos e comissários que viveram os anos dourados da companhia, mas tiveram a aposentadoria tungada. O mais curioso é que até o governo, que pagará a indenização bilionária, também está na fila de credores, pois tem tributos a receber. A determinação do Supremo abre um precedente. “Qualquer empresa agora pode usar os mesmos argumentos da Varig, que não foi a única prejudicada pelo congelamento”, diz Gil Castello Branco, da ONG Contas Abertas. “A decisão deve ocasionar uma enxurrada de ações.”

abre.jpg
REVOLTA
Foto de 2006 registra o protesto de funcionários da Varig contra a falência
da companhia: empresa não resistiu a anos de má administração

O pacote econômico do então presidente José Sarney (1985-1990) tabelou preços de produtos e serviços em todo o País. As empresas que tinham despesas em dólar, como as companhias aéreas, alegam defasagem maior. TAM, já em operação naquele período, e Vasp, que acabou extinta, poderiam ingressar com ações semelhantes. O desfecho favorável à Varig, porém, não torna o direito à indenização automático, como lembra o professor de direito constitucional da Fundaçâo Getulio Vargas (FGV Direito) Ivar Hartmann. “Cada caso tem que ser analisado separadamente, de acordo com o conjunto de provas.” O ministro Gilmar Mendes e o presidente do STF, Joaquim Barbosa, criticaram o argumento de que o congelamento dos preços das passagens ajudou a levar a Varig à bancarrota. Ambos votaram contra a reposição das perdas. “O boteco da esquina, a birosca da Maria, todos fariam jus a um tipo de indenização do Estado. A União seria um tipo de seguradora universal”, disse Mendes.

VARIG-02-IE-2312.jpg
BENEFICIADO
O ex-comandante Zoroastro Filho:
"Preciso do dinheiro para ter uma velhice tranquila"

Alguns especialistas, no entanto, comemoraram a votação do Supremo. “Trata-se de uma decisão histórica”, diz Carlos Eduardo Guerra, diretor da faculdade de direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). “Ela mostra que o exercício do Direito mudou muito. Continua baseado nas normas, mas sofrendo forte influência do contexto social.” Se a decisão do Supremo é polêmica, ela de fato tem o mérito de favorecer o lado que mais sofreu com o desaparecimento da Varig – seus funcionários. Aos 83 anos, muitos deles no comando de aeronaves da Varig, o ex-piloto Zoroastro Ferreira Lima Filho diz que tem direito à complementação de aposentadoria no valor de R$ 12 mil, mas seu benefício atual do Aerus, fundo de previdência composto por ex-funcionários da companhia, é de apenas R$ 800. “Fundamos o instituto para termos uma velhice tranquila. Espero que isso ainda aconteça, antes de eu morrer”, desabafa. A ex-comissária Angela Nogueira, carioca de 59 anos, conta que sofreu depressão por causa das perdas e afirma que alguns colegas chegaram ao suicídio. “Com essa decisão, acho que vou voltar a sorrir”, comemora a aposentada. O advogado Alberto Pavie, que defende a Varig, torce por um acordo com o governo, que vai aguardar o acórdão para verificar se há alguma brecha para recurso.

VARIG-03-IE-2312.jpg
VELHOS TEMPOS
Fartura de bebidas no serviço de bordo da Varig:
luxo e mimos até na classe econômica

Quase uma década depois de sua falência, a Varig ainda desperta paixões. Na semana passada, um grupo de manifestantes se reuniu em Brasília para acompanhar a votação do Supremo – surpreendentemente, alguns sequer eram ex-funcionários da companhia com direito à indenização. Ícone empresarial brasileiro, a Varig fez fama com um serviço de bordo impecável, num tempo em que havia fartura até na classe econômica. Durante muitos anos, os escritórios da Varig no Exterior funcionavam quase como uma embaixada. Podia-se ler os jornais brasileiros do dia e os empregados da empresa ajudavam na solução de pequenos problemas típicos de turistas. A Varig morreu, mas sua bonita história não.

IEpag70e71_Varig-2.jpg

Foto: Uanderson Fernandes/AG O DIA; Adriano Machado/Ag.Istoé; Arquivo VARIG