O conflito na Ucrânia, que se estende há mais de três meses, migrou da Praça da Independência, em Kiev, para a Crimeia, região autônoma ao sul do país. Na semana passada, tropas russas ocuparam o local com a justificativa de que ativistas radicais e ultranacionalistas ameaçam a vida de seus compatriotas. Na quinta-feira 6, o Parlamento da Crimeia antecipou a realização de um referendo sobre a adesão da região à Rússia. A votação, marcada para 16 de março, levou o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, a se pronunciar de forma contundente. Para ele, isso “violaria as leis internacionais e da Ucrânia.” A resposta do presidente russo, Vladimir Putin, veio no mesmo tom. “O governo interino da Ucrânia apoiado pelos Estados Unidos ameaça a vida e a saúde de cidadãos russos e de muitos compatriotas na Crimeia.” Alimentada por discursos inflamados, a crescente tensão entre os dois países coloca a crise da Ucrânia como o maior confronto entre a Rússia e o Ocidente desde a Guerra Fria. “A presença militar na Crimeia mostra, de maneira simplificada, que a Rússia está tentando voltar a ser o império que um dia foi”, disse à ISTOÉ Kristina Wilfore, cientista política e ex-diretora do escritório na Ucrânia da ONG americana National Democratic Institute. “Mas agora vivemos numa era diferente de influência em termos de como um país tenta impactar o comportamento de outro.”

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RIVAIS?
Obama e Putin (da esq. para a dir.): os dois ensaiaram um recomeço nas
relações entre EUA e Rússia, mas os desacordos aumentaram nos últimos meses

Barack Obama e Vladimir Putin parecem saudosos da Guerra Fria, mas eles estão inseridos em um contexto totalmente diferente. O tabuleiro de forças internacionais mudou. A polarização entre duas grandes potências não faz mais sentido diante do poder crescente da China e de outros emergentes. Para Rússia e Estados Unidos, uma ação militar contra um rival do outro lado do planeta é algo tão improvável quanto absurdo. Uma guerra significaria articular coalizões – mas, num mundo cada vez mais global, que país estaria disposto a colecionar inimigos sob o risco de ferir suas relações econômicas? A Europa, que tem sustentado apoio aos Estados Unidos, responde por um comércio bilateral com Moscou no valor de US$ 340 bilhões e depende do gás natural vindo da Rússia. Os russos causariam enorme prejuízo se desrespeitassem os contratos e cortassem o fornecimento energético. Por sua vez, sem esses recursos, a balança comercial russa perderia volume em exportações e o governo deixaria de receber metade de suas receitas. Quem estaria disposto a correr esses riscos? Em tempos em que a guerra ideológica do capitalismo contra o comunismo pertence aos livros de história, a resposta escolhida por Estados Unidos e União Europeia se deu mesmo pela via diplomática – a única realmente possível nestes novos tempos. A Casa Branca aprovou sanções que impõem restrições de vistos e congelamento de bens de autoridades envolvidas na desestabilização da Ucrânia. Já Bruxelas, depois de um longo encontro de líderes, suspendeu as preparações para a reunião do G8 em Sochi, na Rússia, prevista para junho.

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Mesmo que o cenário para uma nova Guerra Fria pareça distante, a recente deterioração das relações entre EUA e Rússia é evidente (leia quadro). “Obama tentou restabelecer contato com a Rússia e foi muito bem-sucedido nessa missão nos primeiros anos de governo”, disse à ISTOÉ Christopher Chivvis, especialista em Eurásia da consultoria Rand, de Washington. “Desde que Putin foi eleito (em 2012), contudo, houve uma decadência das relações e fortes discórdias em relação à Síria, por exemplo.” No entanto, na opinião de Jan Oberg, diretor da Transnational Foundation for Peace and Future Research, um centro de pesquisas independente de Lund, na Suécia, “a velha mentalidade da Guerra Fria nunca deixou de existir.” Oberg argumenta que Bill Clinton começou a cercar a Rússia em 1993 com assessores em vários ministérios de defesa estrangeiros, como na Iugoslávia e na Geórgia, e posteriormente com as abordagens e adesões de antigas repúblicas soviéticas à Otan, aliança militar ocidental.

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FORÇA MILITAR
Acima, tropas russas marcham perto de uma base do Exército
ucraniano em Simferopol, capital da Crimeia. Na terça-feira 4, um
comandante ucraniano discutiu com soldados russos na região (abaixo)

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Profundamente endividada, a Ucrânia perdeu, em meio às disputas diplomáticas, o desconto no preço do gás que pagava à Rússia. O secretário de Estado americano, John Kerry, então, ofereceu US$ 1 bilhão em empréstimos internacionais, que devem somar-se ao auxílio de US$ 15 bilhões proposto pela Comissão Europeia. Se a ajuda for aceita, o país se alinhará ao Ocidente, como queriam os primeiros manifestantes que ocuparam as ruas de Kiev. A antipatia pelos russos se baseia num histórico de opressão marcado principalmente por dois eventos. Entre 1932 e 1933, o governo soviético se apropriou de toda a produção agrícola da Ucrânia e cercou as vilas para impedir o transporte de alimentos. No saldo do período que ficou conhecido como a Grande Fome, ou Holomodor, as estimativas variam entre 3,5 milhões e 10 milhões de ucranianos mortos. Seis anos depois, a mando de Stalin, o primeiro-secretário do Partido Comunista, o ucraniano Nikita Khrushchev, se tornou governante de Kiev e intensificou os expurgos dos soviéticos considerados traidores do ditador. Os inimigos dentro do próprio Partido Comunista eram presos e executados. Fiel seguidor de Stalin, Khrushchev cumpriu com disciplina as cotas impostas pelo chefe e expurgou 170 mil ucranianos.

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Na Crimeia, a história é diferente. Localizada no Mar Negro, a península abriga o porto de Sebastopol e a frota naval mais importante para a Rússia em termos de segurança regional. O exército russo tem permissão para usar a base até 2042, com opção de estender o acordo para mais cinco anos. A importância de Sebastopol também cresceu depois que a guerra na Síria prejudicou as atividades no porto de Tartus. A ligação cultural, que se reflete na etnia e no idioma da maioria da população, faz com que o povo da Crimeia se identifique com a Rússia mais do que com a Ucrânia. Um referendo deve oficializar essa proximidade – embora alguns analistas alertem para a falta de um debate público. Ainda que Putin se declare vencedor do controle sobre a Crimeia, a batalha pode lhe custar o Nobel da Paz. Na semana passada, o mesmo comitê que premiou Obama em 2009 anunciou que o presidente russo concorre ao prêmio neste ano, mas que está de olho no desenrolar da crise na Ucrânia. 

Fotos: David Mdzinarishvili/Reuters/Latinstock; Art/AFP