Era 24 de janeiro, uma sexta-feira, quando o médico cubano Ortelio Jaime Guerra encerrou seu expediente em uma unidade básica de saúde da cidade de Pariquera-Açu, no interior de São Paulo. Integrante do programa Mais Médicos, Guerra chegara ao País em 20 de dezembro. Tinha bom convívio com pacientes e funcionários e sua adaptação no Brasil era tranquila, apesar de algumas derrapadas no português. Mesmo com todos os indícios de que tudo corria bem, ele não voltou ao seu posto na semana seguinte. Funcionários da Unidade Básica de Saúde perguntaram aos dois colegas cubanos do médico que também trabalham na cidade o que havia acontecido. “Ele foi embora”, disseram, sem saber mais detalhes. No dia 9 de fevereiro, a resposta veio pelo Facebook: Guerra escrevera uma mensagem admitindo ter deixado o País e viajado para os Estados Unidos. Cerca de três mil pessoas ficarão sem assistência até outro médico assumir seu lugar. À lista dos desistentes, somam-se outros 111 profissionais que abandonaram seus postos por diferentes motivos. A maior tensão, porém, pende para o lado dos cubanos que, como Guerra, veem no Mais Médicos uma oportunidade de conseguir o visto para morar e trabalhar nos EUA.

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Já deixaram o programa 27 cubanos, segundo o Ministério da Saúde. O governo sabe do paradeiro de 24: além de Ortelio Guerra, 22 voltaram para Cuba (17 por problemas de saúde próprios ou de familiares) e uma ainda está no Brasil – Ramona Matos Rodriguez, cuja maior reclamação é receber US$ 400 frente aos R$ 10 mil pagos aos profissionais de outras nacionalidades. O Ministério da Saúde afirma que o valor pago a todos os profissionais é o mesmo, de R$ 10 mil, mas que, no caso dos cubanos, é o governo de Cuba que se responsabiliza pelo pagamento dos médicos conforme contrato preestabelecido. Dos outros três não se tem notícia. Não aparecem no trabalho nem comunicaram seu afastamento. ISTOÉ conseguiu localizar um deles, José Armando Corzo Gomez, que trabalhava em Timbiras, no Maranhão, e mora atualmente na Flórida. Gomez confirmou que saiu do Brasil no dia 25 de janeiro. O visto para os EUA foi tirado quando ele ainda estava aqui. No país, encontrou a família da esposa. Ela mora em Cuba, mas sua mudança está em processo de tramitação. “Não quero falar mais sobre isso para não comprometer a vinda da minha mulher”, disse. Gomez confirmou que viajou diretamente do Brasil e que não teve nenhum problema na saída. “Tinha visto e licença para trabalhar, estava tudo ok”, afirmou ele.

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Tudo indica que a história dos outros dois “desaparecidos” tem o mesmo desfecho da de Gomez. Anisley Perez Liriano, que estava em Rio do Antônio (BA), nem chegou a frequentar a unidade básica de saúde da cidade e sumiu menos de 20 dias depois de chegar. “Um dia antes de ir embora, ela me pediu que a levasse ao banco para sacar todo o dinheiro que tinha na conta”, afirma Fernando Alves de Almeida, coordenador da atenção básica da secretaria de Saúde de Rio do Antônio. “Anisley nos dizia que tinha um namorado em Miami. Falou aos amigos que deixou o trabalho para ir atrás do seu amor.” A fuga do terceiro cubano, Luis Enrique Herrera, foi ainda mais precoce, segundo Gustavo Caribé, prefeito de Belém de São Francisco (PE), onde o médico atuaria. “Ele não tinha nem o registro quando sumiu entre o Natal e o Ano-Novo. Os colegas comentaram que ele foi para os Estados Unidos, mas ninguém nos comunicou isso oficialmente”, contou.

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Ir estudar ou trabalhar no Exterior e depois partir para os Estados Unidos é uma das opções de muitos cubanos para deixar a ilha. Esse trâmite migratório é possível porque o governo americano tem um programa para facilitar a entrada de profissionais da área da saúde que estejam estudando ou trabalhando fora de Cuba. Segundo Claudete Fernandez, da ONG Solidaridad Sin Fronteras (SFF), que auxilia cubanos a se estabelecerem nos EUA, em 2013 a organização deu amparo a cerca de 400 cubanos, entre eles dois saídos do Brasil, mas que não estão cadastrados no Mais Médicos. Neste ano, prestou auxílio a Ortelio Guerra e Jose Armando Gomez, que faziam parte do programa. “Há outros médicos cubanos que estão no Brasil pedindo ajuda para vir para cá”, diz Claudete.

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DESERTORA
Ramona Rodriguez desligou-se do programa reclamando
da baixa remuneração que recebia e ficou no Brasil

Ainda que seja um número muito pequeno diante do total de profissionais no País (leia mais no quadro), os desertores fizeram o governo federal estabelecer, na semana passada, regras mais rígidas para o programa. Antes as penalidades em relação a ausências e desligamentos não estavam claramente estabelecidas. Agora estão – e soam exageradas. A advertência por ausência injustificada será aplicada a partir de quatro horas de falta. O médico terá cindo dias para se defender. “A princípio, essas medidas parecem ter caráter intimidatório. A impressão é que o governo está mandando um recado diretamente aos cubanos”, critica Florentino Cardoso, presidente da Associação Médica Brasileira. O Ministério da Saúde afirma que não restringe o direito de ir e vir de nenhum profissional do Mais Médicos e que o importante é garantir o antendimento à população.

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Fotos: United States Navy; LUCIANO FREIRE/FUTURA PRESS