Todos os domingos, o silêncio monástico da Abadia de São Geraldo, em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, é quebrado por um tênue sinal de festa. Em comunhão de oração, monges e fiéis costumam ouvir músicas até certo ponto estranhas aos ouvidos ocidentais. Mas como são entoadas por uma voz docemente afinada todos se sentem enlevados, apesar de as canções nem sequer fazerem parte da liturgia católica. A responsável pelo ecumenismo musical é uma paulistana de 42 anos, com pedigree no nome pomposo de Fortunée Joyce Safdié, artisticamente conhecida como Fortuna, cantora que está lançando seu quarto álbum, Mazal, com sons tradicionais da cultura sefaradita, agora aliados ao canto dos monges beneditinos daquela mesma abadia que a prestigia. Ela determinou que o CD tivesse um tratamento acústico, só que bem diferente do conceito hoje espalhado pelas bandas de rock. “Procurei vários mosteiros, porque eu queria um ambiente de oração, na clausura, e os beneditinos foram muito receptivos”, conta Fortuna, que gravou o disco dentro da igreja, usando apenas instrumentos de corda. O resultado é uma agradável mistura que tangencia o exótico e o lírico-religioso. “São canções de amor e de oração”, define a cantora.

Fortuna ainda não é conhecida das multidões, mas a cada concerto realizado com o esmero de uma produção teatral de qualidade ela arrasta um público numeroso e já cativo. Não só da comunidade judaica, mas cada vez mais de credos diversos. A razão está na maneira como dá brilho a um repertório secular, na maioria das vezes perdido até entre os próprios judeus, e na concepção performática da qual fazem parte jóias, bijuterias sofisticadas e trajes que consomem quilos de cetim e brocados.
Para quem só agora ouviu falar da cantora, saiba que ela já foi backing vocal de Toquinho e Chico Buarque, mas não gostava. “Precisava me diferenciar.” Ainda cantando MPB, em 1992 partiu de Paris para uma turnê por Israel, sendo perseguida o tempo todo por sonhos povoados de ciganos num deserto mouro com palavras em hebraico flutuando aleatoriamente. “Ouvia melodias suaves. Acordava no meio da noite e as gravava.” Pois os sonhos premonitórios se tornaram realidade. Numa visita ao Museu da Diáspora, em Tel-Aviv, ouviu uma canção em ladino, a língua falada pelos judeus sefaraditas, originários da Espanha, que se dispersaram em várias direções após sua expulsão em 1492 por obra da Inquisição – sefarad em hebraico significa Hispânia, como era conhecida a Península Ibérica. A música chama-se Durme mi alma donzeya e faz parte do primeiro CD da cantora, La prima vez.

A partir daí surgiu a diferenciação que ela tanto queria. Gravou três discos nos quais buscou o resgate do ladino, numa viagem musical que se enraíza nos países do Mediterrâneo. “Sempre mantendo a alma judaica e a sensualidade da Espanha, que é onde nasceu este cancioneiro.” Tamanha empreitada deu certo. No total, Fortuna – que também apresenta o programa A música do mundo, na Eldorado FM – já vendeu cerca de 85 mil discos, um número expressivo quando se pensa numa sonoridade tão desconhecida, embora facilmente assimilável por ouvidos não ortodoxos. Papai Edmund Safdié – dono do Banco Cidade, um conglomerado financeiro criado em 1965, em que apenas o banco administra um patrimônio de mais de R$ 200 milhões – hoje está feliz com a opção da filha. “No começo não recebi um tostão da minha família”, garante Fortuna, que diz levar um estilo de vida no qual nada lembra o de uma herdeira milionária. Tanto que a revista Caras quis fazer com ela uma reportagem em sua casa e desistiu. Disseram que seu apartamento de 250 metros quadrados no elegante bairro paulistano de Higienópolis era despojado demais.