O governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho (PDT), como todo bom evangélico, é temente a Deus. Só que nos dias de hoje o fogo do inferno tem chamuscado, cada vez mais, sua administração. Depois de mais uma semana de denúncias contra a Turma da Maçaneta, grupo de auxiliares de primeiro escalão, o pedetista se vê às voltas com outra banda problemática. Seus irmãos de fé, líderes evangélicos e principais alicerces de seu projeto político, também são alvo de suspeita.

Um dos personagens é o deputado Francisco Silva (PST), ex-secretário de Habitação, que ainda mantém grande influência no governo. Por exemplo, o presidente da Companhia Estadual de Habitação (Cehab), Eduardo Cunha, suspeito de várias irregularidades, é indicação sua. Silva é acusado por deputados estaduais de receber propinas nos contratos da Cehab. Outro poderoso é o pastor Everaldo Dias Ferreira, subsecretário do Gabinete Civil e responsável pelo polêmico programa Compartilhar Cesta do Cidadão, que usa instituições religiosas para distribuir mensalmente 25 mil cheques de R$ 100 a famílias carentes. Os evangélicos recebem 84% da verba. Os católicos, que são maioria, ficam com só 16%.

Silva desfruta de uma estreita amizade com Garotinho. Foi o primeiro secretário nomeado, em gratidão ao apoio na campanha. Dono de uma rádio evangélica que oscila entre o segundo e o terceiro lugar na audiência, ele abre espaço para Garotinho discursar duas vezes ao dia. Uma de suas propriedades – uma casa na Gávea, arrematada em leilão por R$ 250 mil e avaliada em R$ 1,2 milhão – é ocupada pelo presidente da Cehab. “Meu patrimônio comporta comprar essa casa”, diz Silva. Ele costuma fretar jatinhos para levar o governador em viagens de pregação evangélica. “Se for preciso, pago outras vezes.” Num dossiê entregue por deputados estaduais ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas do Estado na quinta-feira 6, Silva é apontado como principal beneficiário de um esquema de corrupção na autarquia que constrói casas populares. “Não será uma carta anônima que vai me denegrir”, defende-se o deputado, que foi eleito pelo PPB

Já a ala de oposição do Partido dos Trabalhadores pediu ao TCE que investigue o Cesta do Cidadão. Os cheques estariam sendo trocados por votos dos fiéis para outra evangélica, a vice-governadora Benedita da Silva, candidata a prefeita do Rio pelo mesmo PT. O coordenador do projeto e pastor da Assembléia de Deus, Everaldo Dias Ferreira, 44 anos, foi o responsável pela filiação de 1.019 fiéis ao PT em 1999. “O Cesta do Cidadão é um instrumento de manipulação dos carentes pelos picaretas do pragmatismo religioso”, ataca o deputado Milton Temer (PT), que pretende cruzar as listas de beneficiados com as de novos filiados ao PT.
Everaldo afirma que as 210 igrejas evangélicas do projeto foram indicadas por seu trabalho social e cada uma só pode beneficiar 50 famílias. As demais devem ser escolhidas na comunidade – o que não impede que sejam também evangélicas. A Igreja Católica estranha a divisão e quer aumentar seu quinhão. “Nenhuma instituição tem o alcance social da Igreja Católica”, observa a coordenadora da Pastoral do Menor, Maria Christina Sá, responsável pelo programa na Arquidiocese do Rio. “Temos de aumentar nossa participação.”

Interesses – Os amigos leigos, no entanto, ainda são os responsáveis pelas maiores dores de cabeça de Garotinho. Até seus aliados se surpreenderam com a revelação de que o escritório de advocacia do secretário de Justiça, Antonio Oliboni, atua em causas contra o Estado. O escritório fica no 20º andar de um edifício no centro do Rio. O imóvel tem funcionado, desde a campanha eleitoral de 1994, como quartel-general das pessoas que hoje concentram os poderes do Palácio Guanabara. A começar pelo próprio governador.

“Até hoje Garotinho vem aqui. De vez em quando aparece com a primeira-dama”, disse, na última quinta-feira, um dos porteiros do edifício. De 1994 até assumir o governo, Garotinho usou o imóvel de Oliboni para reunir-se com políticos e empresários. No mesmo escritório, Oliboni cuidava dos interesses da empresa Brasal, de Jair Coelho, que fornece comida aos presos do Estado, sem licitação e sob a suspeita de superfaturamento do preço unitário da refeição (R$ 4,50). Jair é marido da emergente Ariadne Coelho, mais conhecida como a “rainha das quentinhas”.

“A corrupção no governo já é suficiente para a abertura de um processo de impeachment. Nunca vi gente indo com tanta sede ao pote”, adianta-se o deputado estadual Hélio Luz, expondo o alto nível de irritação dos petistas com o governo que ajudaram a eleger e do qual fazem parte. No domingo 2, o PT tomou uma decisão inusitada: romper com Garotinho sem sair do governo. O partido decidiu que deixará seus cargos em 15 dias se o governador não afastar os principais suspeitos de corrupção, entre outras dez reivindicações. A estranha decisão deu razão ao governador, que já chamou o PT de “partido da boquinha”.

Parentesco – No escritório, Oliboni tinha como sócio minoritário o advogado Hugo Leal, secretário de Administração. Nele também atuava Jonas Lopes de Carvalho, secretário-chefe do Gabinete Civil e homem forte nos contatos políticos de Garotinho. Atuam no escritório três parentes de Jonas: a irmã Roseli, o cunhado Francisco e a sobrinha Marcela, mulher de Oliboni. Os três secretários não foram os únicos amigos que Garotinho transferiu da Rua Senador Dantas para seu primeiro escalão. Até o ano passado funcionava no local a Comunic, empresa de assessoria de imprensa de outros dois fiéis colaboradores do governador que mandam – e muito – no Palácio Guanabara: o coordenador de Comunicação Social, Carlos Henrique Vasconcelos, e sua mulher, a secretária especial e coordenadora do programa Vida Nova, Ana Paula Costa. Vasconcelos administra as verbas de publicidade do governo, que darão um salto olímpico: de R$ 3 milhões no ano passado para R$ 15 milhões em 2000.

Secretário estadual desde o início de 1999 – com vencimentos de R$ 6 mil –, Jonas Carvalho continua recebendo R$ 1.360 como funcionário de carreira da prefeitura de Campos, onde é assessor jurídico. Procurado, Jonas mandou sua assessoria dizer que foi legalmente cedido pela prefeitura campista, mantendo “todos os seus direitos e vantagens”. A secretária de Administração de Campos, Claudia Salgado, diz que “Jonas continua recebendo salário pela Prefeitura de Campos e foi cedido sem ônus para o governo estadual”. A explicação do subsecretário estadual de Administração, José Roberto Coutinho, é diferente. “Jonas é secretário e recebe comissão pelo cargo. O município de Campos é ressarcido. Ele foi cedido com ônus para o Estado.” Ou seja: pelas explicações oficiais, Jonas estaria embolsando dois salários. “Se ele estiver recebendo daqui e de lá, eu vou cortar”, diz o prefeito de Campos, Arnaldo França Viana.

O próximo pedido de abertura de CPI sobre o governo a ser votado é do deputado Chico Alencar (PT), que quer investigar as denúncias de que as empresas concessionárias estariam sendo achacadas pela Agência Reguladora de Serviços Públicos (Asep). A agência é presidida por outro amigo íntimo de Garotinho, Ranulfo Vidigal, afastado da Prefeitura de São João da Barra por improbidade administrativa. Ranulfo tinha como secretário de Fazenda um irmão de Garotinho, o atual presidente da Câmara de Vereadores de Campos, Nelson Nahim Matheus.

Em meio às denúncias contra seus assessores, Garotinho aproveitou um encontro com empresários do Mercosul, em Buenos Aires, para se afastar do centro das atenções. O governador, que sempre se destacou pela habilidade em jogadas de marketing político, apelou desta vez para uma receita batida na política do Rio: em vez de tomar iniciativas concretas diante das acusações, preferiu atribuí-las a uma orquestração do governo federal para minar sua candidatura à Presidência da República. A expectativa agora é saber de que forma o pedetista vai levar adiante o seu governo e seus projetos políticos, nos dois anos e meio de mandato que ainda tem pela frente. Surpresa com tanta confusão, só resta a população do Rio rezar