Que há algo de podre na Prefeitura de São Paulo nunca ninguém duvidou. Durante mais de um ano delegados, promotores e vereadores de oposição tentam em vão encontrar o elo que possa ligar o gabinete do prefeito Celso Pitta ao propinoduto que se instalou no submundo da administração municipal. Na sexta-feira 10, a primeira-dama, Nicéa Pitta, tratou de jogar mais lenha nessa fogueira e acabou espalhando brasas para muito além dos limites paulistanos. Sobrou para o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-SP), para o ex-senador Gilberto Miranda (PFL-AM) e para o malufismo em geral. Em entrevista concedida à Rede Globo, ela foi taxativa: “Meu marido não conseguiu ser forte o suficiente para não se envolver na corrupção que está alojada na prefeitura”, disparou. “Ele sabia de tudo, assim como eu também sabia.” Ao decidir contar o que sabe, Nicéa mostrou que os vereadores paulistanos são bagrinhos e que o rastro da sujeirada que escoa dos ralos da Prefeitura de São Paulo chega a Brasília, com passagens pela Bahia e até pelos Estados Unidos.
 

Segundo a primeira-dama paulistana, ACM nunca hesitou em usar todo o seu poder político para favorecer as empresas da família. Nicéa lembrou que quando a CPI dos Precatórios estava colocando a corda no pescoço de Pitta, o ex-senador Gilberto Miranda manteve diversas conversas com o prefeito. “Ele foi o intermediário de ACM, que pressionou para que a prefeitura liberasse o dinheiro devido desde a gestão de Maluf para a OAS”, acusou. Ela se referia às dívidas da prefeitura com a Vega-Sopave, empresa do grupo OAS, que tem boa fatia da limpeza urbana de São Paulo. Nicéa afirmou que as pressões do senador baiano surtiram efeito, que a dívida foi paga e que o toma-lá-dá-cá se concretizou com um parecer de Miranda na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, inocentando tanto Pitta quanto Paulo Maluf da emissão irregular de títulos públicos para pagamentos de supostos precatórios. Além da limpeza urbana, a OAS, cujo proprietário é genro de ACM, foi responsável por diversas obras em São Paulo, inclusive pela avenida mais superfaturada de que se tem notícia: a Águas Espraiadas, que tem os quilômetros mais caros do planeta, inaugurada na gestão de Paulo Maluf, o padrinho e antecessor de Pitta.
Nervosa e por vezes gaguejando, Nicéa afirmou que ACM chegou inclusive a telefonar para sua casa, dizendo, em tom autoritário, que Pitta a impediria de falar com jornalistas. “Jamais dei liberdade a ele para me impedir de falar. Ele não vai me calar nunca”, desafiou. Após a entrevista, Nicéa já contava com seis policiais militares lhe dando proteção. Como resposta, ACM baixou o nível: “Nunca tive envolvimento com esse prostíbulo que é a família de Celso Pitta e desafio quem quiser provar o contrário”, afirmou o presidente do Senado. “Nunca falei com Gilberto Miranda sobre qualquer assunto relacionado à OAS, nunca telefonei para a casa do senhor Celso Pitta e estive com ele há um mês, quando recebi uma visita de cortesia no hospital. Acho que o repórter da Globo deveria ter me procurado antes, mas isso não irá abalar a minha amizade com a família Roberto Marinho.” O senador disse que não pensa em processar Nicéa “porque ela não tem sanidade e portanto é inimputável”.
 

Pianista – No mar de lama revolvido por Nicéa, um malufista de carteirinha, veterano em escândalos político-financeiros, voltou à baila. A primeira-dama relatou que no ano passado seu filho, Victor, foi visitar a irmã em Nova York e, de lá, telefonou para o pai pedindo dinheiro. O prefeito, então, disse-lhe que faria a remessa através do Banco do Espírito Santo. Na agência bancária, o rapaz foi surpreendido: os US$ 5 mil haviam sido enviados por João Carlos Martins. Trata-se do pianista que emitia notas frias da empresa Paubrasil a empreiteiras que financiaram campanhas malufistas de 1990 e 1992. Aliás, todas as empreiteiras que figuravam nas agendas de Martins foram aquinhoadas com obras nas gestões de Maluf e Pitta na prefeitura paulistana. A entrevista de Nicéa levou três dias para ser feita. Do que foi divulgado, apenas essa acusação estava acompanhada de documentos. Ela própria, no entanto, fez questão de ir além. “Não posso descartar a possibilidade de meu marido ter uma conta conjunta com Martins”, sugeriu. O próprio pianista não nega o despacho bancário, que, antes de chegar a Nova York, passou por Lisboa e Miami. Para justificá-lo, porém, ele usa um argumento que já parece ser comum nas confusões em que se envolve o prefeito Pitta. “Foi um empréstimo que o prefeito já pagou”, disse Martins, que havia se afastado do malufismo. Nem mesmo o megainvestidor Naji Nahas, também figura carimbada nas denúncias nacionais, se viu ileso das garras de Nicéa. Ela contou que quando esteve com o marido na França, durante a Copa do Mundo de futebol, o casal fora recebido por Nahas, que na ocasião buscava articular uma reaproximação entre Pitta e Maluf. “Depois da Copa, ele esteve em nossa casa e, ao ouvir que a reaproximação com Maluf era impossível, sugeriu que meu marido fizesse um bom caixa para arcar com as despesas jurídicas que teria após deixar o cargo de prefeito”, afirmou. “Eu o coloquei da porta para fora.”

Plástica eleitoral – O cirurgião Jorge Pagura, famoso por clinicar em casos como os de Osmar Santos e Gérson Brener, também não escapou dos disparos de Nicéa. Ele é secretário de Saúde de São Paulo e, segundo a ex-mulher do prefeito Pitta, tem mostrado tanta habilidade para desviar dinheiro público como para exercer a medicina. “As concorrências para compras de remédio são fraudadas, pois os laboratórios que estão no esquema recebem antes dos demais os preços que a prefeitura estaria disposta a pagar”, afirmou Nicéa, que diz ter a convicção de que Pagura ficaria com 25% das faturas. Além disso, a primeira-dama assegurou que, em determinados centros médicos da periferia, a prefeitura tem feito cirurgias plásticas em potenciais cabos eleitorais do esquema de Pitta, que apesar de tudo ainda sonha com a reeleição.
A primeira-dama, que anos atrás vendia frangos superfaturados para a Prefeitura, explicou com todas as letras as razões que impediram o andamento da CPI da máfia municipal, no ano passado. “Todos os vereadores que votaram contra a continuidade da CPI receberam dinheiro. Já era assim no tempo do Maluf e o Pitta herdou isso tudo.” Segundo ela, nem sequer a maneira como se molhavam as mãos dos vereadores mudou da gestão do padrinho para a do afilhado. “Quem fazia a intermediação e estipulava o valor de cada vereador eram o presidente da Câmara, Armando Mellão, e o secretário de Governo, Carlos Augusto Meimberg. Na gestão do Maluf, esse trabalho era feito pelo Edevaldo (Alves da Silva, então secretário de Governo)”, disse Nicéa. Mellão e Meimberg negaram as acusações.
 

É claro que um prefeito que tem conhecimento de toda a corrupção que lhe rodeia e nada faz para impedir é tão criminoso quanto aqueles que botam a mão no dinheiro. O mesmo vale dizer da mulher que não só dorme com o prefeito como participa das articulações que são montadas em sua própria residência. “Várias vezes tentei convencê-lo a denunciar toda a corrupção, mas ele se limitava a dizer que tudo fora herdado da época do Maluf e que seria muita pretensão minha romper com isso”, afirmou. Na entrevista, Nicéa tenta se preservar de uma possível prevaricação e diz inclusive ter proposto um flagrante nos corruptos. “Sugeri a meu marido colocar câmeras ocultas na sala de nosso apartamento e fazer ali mesmo a negociação com os vereadores, mas ele não concordou com isso.” Apesar de dar um tom bombástico às suas revelações, a primeira-dama não diz quanto custou cada vereador e se embaralhou ao tentar explicar a origem do dinheiro. “Sei que do bolso do meu marido não foi, também sempre soube que a prefeitura não tem dinheiro. Acho que foi dessas empresas que têm obras na prefeitura. Pode ser também favorecendo algumas empresas que estão fazendo trabalhos na prefeitura.”

Pasta verde – A disposição de Nicéa em enlamear ainda mais a vida do marido, de quem já está separada de fato, não vem de agora. Foi uma decisão pensada. Nos últimos 20 dias, ela entrou em contato com o Ministério Público cinco vezes, garantindo ter denúncias graves a fazer contra secretários municipais e alguns vereadores, inclusive documentadas. Numa das vezes, às vésperas do Carnaval, a primeira-dama conversou com o promotor Roberto Porto. “Embora ela tenha falado genericamente sobre irregularidades, garantiu que tinha como provar”, afirmou o promotor. Em três dessas ocasiões, Nicéa chegou a marcar depoimento no Ministério Público mas acabou cancelando de última hora. Numa das vezes, alegou estar fisicamente indisposta. Agora, será obrigada a depor. Na própria sexta-feira 10, os promotores já estavam tratando de agendar o depoimento.
Nos bastidores do Ministério Público, suspeita-se que a primeira-dama esteja reeditando a estratégia do seu ex-marido. “Ela pode estar apresentando uma nova pasta verde ou, quem sabe, buscando uma moeda de troca na relação marido e mulher”, disse um integrante do Ministério Público. No auge das denúncias de corrupção em seu governo, em abril do ano passado, Pitta anunciou sua disposição em “varrer todas as irregularidades existentes na máquina administrativa”. Alardeando ter informações fundamentais às investigações, o prefeito entregou ao procurador-geral de Justiça, Luiz Antônio Marrey, um dossiê com quase 300 páginas que ficou conhecido como a pasta verde. Embora volumoso, a maior parte do dossiê era cópia de sindicâncias e pedidos de abertura de inquéritos administrativos feitos com base em denúncias feitas pelo próprio Ministério Público. “Nossos documentos deram uma volta e caíram aqui de novo”, comentou à epoca Marrey.
De qualquer forma, depois que Nicéa verbalizou as denúncias pela televisão, as investigações sobre o mar de lama na administração municipal serão redirecionadas. “Agora serão voltadas para o gabinete do prefeito”, disse Porto. Na noite da sexta-feira 10, a Prefeitura de São Paulo emitiu uma nota à imprensa, assinada pelo secretário de Comunicação Social, Antenor Braido. “É lamentável que uma pessoa fora de seu estado normal e atravessando um momento difícil seja usada em um delírio de acusações desprovidas de qualquer fundamento, prova ou indício”, registra a nota. O prefeito, que está na França, preferiu não se manifestar antes de conhecer os detalhes do que foi dito pela ex-mulher.

Ringue na tevê
As novas denúncias contra Celso Pitta são mais um round da briga entre o prefeito e a Rede Globo. Durante o Campeonato Brasileiro de Futebol, em dezembro de 1999, a prefeitura paulistana entrou com ação cautelar na Justiça e conseguiu alterar o horário da final Corinthians x Atlético-MG. Pitta queria evitar os congestionamentos na cidade e o horário do jogo foi transferido das 16h para as 21h. A Globo, que juntamente com a Rede Bandeirantes detinha os direitos de transmissão, teve de engolir a derrota jurídica. No mês passado, Pitta voltou a cutucar a onça. Mandou interditar o Sambódromo do Anhembi, onde o padre Marcelo Rossi iria comandar uma festa de réveillon com transmissão da Globo. O prefeito alegou que não haveria segurança para o público, mas, dessa vez, uma liminar liberou a festa.
 

Uma semana depois, a Globo reagiu com um editorial de três minutos lido no telejornal SPTV. E o diretor de jornalismo da Globo em São Paulo, Amaury Soares, acusou o prefeito de tentar prejudicar a emissora. Em função da série de reportagens exibida no Jornal Nacional contra a prefeitura paulistana, Pitta sofreu um processo de impeachment, que acabou sendo derrubado pela Câmara Municipal. Mas não se livrou do embate com a Globo. Agora a emissora dá o troco colocando o desabafo da ex-mulher de Pitta diante das câmeras. Horas antes de a entrevista com Nicéa ir ao ar, o prefeito, de Cannes, na França, tentou insistentemente falar com a direção da emissora, mas não foi ouvido.
Valéria Propato