O padre italiano Giordano Bruno foi queimado na fogueira em 1600 acusado de heresia pela Inquisição ao defender que a Terra não está no centro do Universo, como descobriu o astrônomo polonês Nicolau Copérnico. Naquela época, a força da fé podia se impor a ferro e fogo sobre os argumentos da ciência, que ensaiava enxergar o mundo um pouco além dos limites dogmáticos descritos nas páginas da Bíblia. Passados 400 anos, físicos desvendam os segredos do átomo, astrônomos constroem telescópios para observar os confins do Universo, geneticistas clonam ovelhas e os biólogos – graças ao naturalista inglês Charles Darwin e sua teoria da evolução das espécies, de 1859 – sabem que nossa espécie é só uma entre 30 milhões de outras, todas descendentes do primeiro organismo que surgiu há quatro bilhões de anos. Por seu sucesso em explicar o Universo à nossa volta, era de se esperar que a ciência tivesse alcançado pelo menos junto às populações com acesso à educação e vivendo nos países mais desenvolvidos a aceitação e a independência em relação aos dogmas religiosos que lhes são mais do que devidas. Mas não é isso o que acontece. Pelo menos no Kansas, Estado que fica bem no meio dos EUA, povoado por milharais e fazendeiros conservadores. Na quarta-feira 11, seis dos dez membros da comissão de educação estadual resolveram excluir a evolução das espécies do currículo de suas escolas. Não satisfeitos, aproveitaram para reduzir o espaço dado à teoria do Big Bang, segundo a qual o Universo surgiu há 15 bilhões de anos. "É um passo à frente. Vamos melhorar em vez de piorar o ensino de ciência no Kansas. Existia uma agenda liberal buscando glorificar a evolução nas escolas", disse Scott Hill, membro da comissão e líder criacionista, movimento que defende a origem do homem e do cosmo nos moldes do Gênesis. De fato, 40% dos americanos (e um em cada quatro universitários) acreditam que Deus criou a Terra, as plantas, os animais e Adão à sua imagem e semelhança. E fez isso tudo há menos de dez mil anos, uma bobagem sem tamanho!

"Remover das aulas de Ciência um conceito importante como a evolução é como amputar uma perna e pedir para você correr os 100 metros", atacou William Wagnon, um dos quatro membros derrotados na votação. A decisão não proíbe os professores de ciência de ensinar o evolucionismo, mas conhecimentos sobre evolução não serão exigidos nos exames. "É uma garantia virtual, dadas as realidades da educação, que esse conceito central da biologia será diluído e eliminado, reduzindo assim os cursos de Biologia a algo como Química sem a tabela periódica ou história americana sem Lincoln", exasperou-se Stephen Jay Gould, professor de Geologia na Universidade de Harvard, autor de sucesso e presidente da Associação Americana para o Progresso da Ciência.

 

Advertência – Desde 1995, Arizona, Alabama, Illinois, Novo México, Texas e Nebraska tentaram excluir a evolução dos currículos. Em 1996, os criacionistas do Alabama conseguiram incluir nos livros escolares de ciência uma advertência chamando a teoria da evolução de controversa, alegando que ninguém estava presente quando a vida surgiu na Terra. Se essa atitude institucionalizasse a lei de São Tomé, aquela do ver para crer, estariam a priori descartadas as existências dos átomos e dos buracos negros.

"A sabedoria entre a humanidade é muito estreitamente dispersa", alfinetou o célebre jornalista americano H.L. Mencken, em 1925, ao cobrir numa cidadezinha do Tennessee o infame julgamento de John Scopes, um professor ginasiano acusado de ensinar aos alunos a teoria da evolução, que havia sido proibida em diversos Estados nos anos 20. Scopes foi condenado e sua história recontada décadas depois no filme O vento será tua herança, mas as leis que baniam a evolução resistiram até 1968, quando foram proibidas pela Suprema Corte dos EUA. "O argumento de que ensinar evolução destruirá a fé dos estudantes é tão pouco verdadeiro hoje quanto em 1925", diz uma carta dos reitores das seis universidades públicas do Kansas, ao lembrar que a retirada da evolução do currículo prejudicará os alunos que quiserem frequentar universidades no resto do país.

 

Sem contradição – O criacionismo é um fenômeno restrito aos evangélicos – especialmente os americanos. Desde 1996, a Igreja Católica considera oficialmente a evolução como mais do que uma hipótese. "Os avanços interpretativos dos textos bíblicos mostram que esses relatos da criação são mitos no sentido positivo da palavra", revela o padre Márcio Fabri, professor do Instituto Alfonsiano de Ética Teológica, em São Paulo. "Não há contradição entre esses relatos e uma visão evolucionista que assuma a divindade como causa suprema da criação", diz Fabri.

"A evolução não é mais uma teoria, como prova o projeto genoma", diz o geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais. Através do estudo do DNA, a molécula nas células de todos os seres vivos que armazena o código hereditário, consegue-se mensurar o grau de parentesco entre as espécies. Assim, sabe-se desde 1994 que os genomas de homens e chimpanzés são 98,4% idênticos (os poderes da fala e da razão estão concentrados 1,6% restantes) e as duas espécies descendem de um ancestral comum que viveu há sete milhões de anos. O gene dos gorilas, por sua vez, é 2,3% diferente do nosso e do de Chita, e sua separação do ancestral comum de homens e chimpanzés ocorreu há dez milhões de anos.

 

Elo perdido – Ainda não se identificou quem foi esse ancestral comum. Seus ossos ainda não foram achados. Mas há uma profusão de fósseis de seus descendentes compondo uma escada evolucionária que chega até nós. A personagem mais célebre dessa galeria é Lucy, a fêmea de Australopitecus afarensis, espécie de hominídeo que viveu há 3,5 milhões de anos, na África, e já andava em pé. Existem na África e Ásia restos de Homo erectus, os primeiros ancestrais do homem a usar pedras como ferramentas, há dois milhões de anos. Há por fim os Neanderthais, seres maiores e mais fortes que nós, que habitaram a Europa e a Ásia entre 200 mil anos e 40 mil anos atrás. Apesar de possuírem uma caixa craniana maior que a nossa, faltava alguma coisa muito importante para torná-los humanos, provavelmente a fala. Essa é atributo dos Homo sapiens, que evoluíram na África há pouco mais de 100 mil anos. De lá saíram para povoar o planeta. E inventar a ciência que os criacionistas insistem em censurar. Em 1925, consternado com o veredicto do caso Scopes, H.L. Mencken escreveu: "Mesmo o homem supersticioso tem direitos inalienáveis. Ele tem o direito de defender suas imbecilidades tanto quanto quiser. Mas certamente não tem direito de exigir que elas sejam tratadas como sagradas."