A chegada da última lua nova alterou por completo a rotina de Mussa Al Cuiabani. Desde então, ele acorda às quatro horas da manhã para o suhur, uma refeição à base de ovos, pães, frutas, água e chá. Até o pôr-do-sol, esses são os únicos alimentos e líquidos que ingere. Mussa tem de encerrar o suhur com uma boa folga para o amanhecer, a tempo de também fazer a fajr, a primeira das orações do dia. Por volta das seis horas, após ter lido trechos do Alcorão, ele volta para a cama e dorme novamente até as 9. “Não sou de ferro”, justifica, bem-humorado, o responsável pela Mesquita do Pari, em São Paulo. Assim como ele, milhares de brasileiros convertidos ao Islã jejuarão diariamente durante o Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos, que teve início na quinta-feira 13 e vai até 12 de outubro (como o calendário islâmico é lunar, a data do Ramadã no Ocidente varia a cada ano).

Segundo a crença islâmica, foi durante o Ramadã que Deus revelou o Alcorão (o livro sagrado do Islã) ao profeta Maomé. Entre outras restrições impostas pela religião nessa época estão a abstinência sexual e a proibição de fumar, da alvorada ao crepúsculo. “É um período de reflexão e oração, para se abster de todos os desejos. Nos colocamos no lugar das pessoas que não têm comida nem água. Reeducamos o organismo e a alma”, diz Mussa, 32 anos. Natural de Cuiabá (MT), ele foi batizado na Igreja Católica pelos pais como Moisés de Oliveira. Converteu-se ao Islã aos 13 anos, influenciado por um amigo de escola (os muçulmanos preferem usar a palavra reversão, já que, para eles, toda pessoa nasce muçulmana e deve um dia regressar ao Islã).

Adotou, então, um novo nome: Mussa El Zaitun, uma tradução livre do seu nome em português para o árabe. Recentemente, optou por mudar o segundo nome para Al Cuiabani, que significa “O Cuiabano”. Após passar seis anos no Canadá, onde trabalhou na construção civil e estudou em uma universidade islâmica, Mussa voltou ao Brasil no começo de 2006 para cuidar da mesquita e casar-se com Halima, 26 anos, também uma brasileira convertida sem nenhum passado ou parente islâmico. Os dois se conheceram por meio de uma comunidade muçulmana no site de relacionamentos Orkut.

O último censo do IBGE, do ano 2000, calculou em cerca de 27.240 os brasileiros muçulmanos. Mas a Federação Islâmica Brasileira acredita que o número deles vivendo no País seja, pelo menos, 50 vezes maior – cerca de um milhão e meio de pessoas. Justifica a estimativa com base no número de imigrantes árabes morando por aqui e no interesse crescente das mais diversas classes sociais pelo Islã.

As maiores comunidades estão no Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul. “Só nessa mesquita, fazemos de duas a quatro reversões por mês”, diz Mussa, que aos sábados ministra um curso de religião no Pari, enquanto Halima ensina a língua árabe. Gratuitas, as aulas recebem até 100 pessoas por final de semana, a maioria esmagadora de brasileiros. Representantes da comunidade islâmica calculam que, atualmente, entre 10% e 15% dos muçulmanos no Brasil sejam pessoas sem nenhuma ascendência árabe. Gente como a designer e empresária Adriana Bittencourt, que converteu-se após sucessivas viagens ao Marrocos, e o atleta Jadel Gregório, medalha de ouro no Pan do Rio e vice-campeão mundial de salto triplo.

“O Alcorão é absolutamente maravilhoso. O islamismo me mostrou a vida, a fé, a eternidade”, afirma Gregório. Ele se interessou pela religião após conhecer Samara Ghani, que na época era fisioterapeuta do Clube de Atletismo BM&F, onde treina, e hoje é sua esposa. A conversão aconteceu em 2004, depois de uma viagem para o Líbano para conhecer os familiares, praticamente todos muçulmanos, de Samara. “Sempre tive muita fé em um Deus supremo, mas não uma religião definida. Agora, se Deus quiser, morrerei muçulmano”, diz o atleta, que mudou seu nome para Jadel Abdul Ghani Gregório. Como está envolvido na disputa de uma competição importante, ele ainda não começou a praticar o Ramadã este ano – o que promete fazer a partir da segunda- feira 24.

Para Charles Domingues, 33 anos, os dogmas claros e de fácil entendimento e a ausência de distinção social são fatores que atraem os brasileiros para uma religião de berço distante e praticada por pessoas com costumes tão diferentes. Ele conheceu o Islã por meio de um amigo muçulmano, em uma época em que só queria saber de diversão e transgressão. “Gostava de beber, de cair na noite com a mulherada. Enfim, tinha uma certa irresponsabilidade típica dos jovens”, conta Domingues, que trabalha no Centro de Divulgação do Islã para a América Latina. Quando anunciou sua decisão de converterse ao islamismo, há 13 anos, a família, católica, ficou apreensiva. As piadinhas como “vai virar terrorista” duraram, porém, pouco tempo. “Quando perceberam a mudança da minha postura, das minhas atitudes, viram que a religião estava me fazendo bem. Na primeira vez que minha mãe me viu jejuando durante o Ramadã, ela se emocionou e chorou”, afirma Charles, que preferiu não assumir um nome árabe para mostrar aos brasileiros que a religião é aberta a todos.

Contrariando o estereótipo sisudo que normalmente é associado aos muçulmanos, a secretária Rosângela França, 45 anos, diverte-se ao lembrar que colocou uma saia na cabeça para poder entrar numa mesquita pela primeira vez. Convertida há 16 anos, após se decepcionar com diversas religiões, ela diz que anda sempre com um lenço reserva dentro da bolsa. “Se alguém maldoso puxar, eu apenas coloco outro no lugar”, diz. E abre um largo sorriso antes de completar: “Sem medo de ser feliz.”