O sertanejo espicha os olhos em busca de sinais de chuva. Ao esquadrinhar o azul que se estende sobre a caatinga, seu Antônio de Souza franze o cenho e aperta os olhos para enxergar longe, aprofundando os sulcos na pele marcada de sol. O veredicto é firme. O céu já verteu a água que devia ao sertão este ano. Na pequena Ouricuri, encravada no miolo do semi-árido pernambucano, 642 quilômetros a oeste do Recife, próxima às divisas com o Piauí e a Paraíba, a peleja é a mesma desde que o mundo é mundo. A chuva é pouca para aplacar a teimosia de seu povo na precisão por água. A espera só se compara ao aguardo pela conclusão de obras para melhorar o abastecimento de água. No caso de seu Antônio, há a lembrança de um dia de festa, uma sexta-feira ensolarada em que a cidade foi preparada com palanque, bandeiras e tomada por um sem-número de senhores de terno e sombrinhas sobre a cabeça para proteger-se do sol. Tudo preparado para receber o presidente Fernando Henrique Cardoso, em 31 de julho de 1998, na campanha pelo segundo mandato.

Aos 70 anos, o aposentado analfabeto sentiu-se honrado em receber um presidente na pequena casinha caiada, que ainda continua à venda. Nos cinco minutos de visita, FHC tomou um café e fez uma promessa. "Ele perguntou se queria que a água viesse, eu disse que querer a gente queria mas que a esperança era pouca. Aí ele disse que nossa água chegaria. Não veio. Somos abandonados nas mãos de Deus", conta seu Antonio ao lembrar que a conclusão da obra foi prometida para o final de 1998. Em Ouricuri termina a primeira fase de uma obra que já nasceu enrolada: a adutora do Oeste, sistema engendrado para trazer água de Orocó, na beira do rio São Francisco, até as terras calcinadas do sertão. São 106 quilômetros de adutora cuja construção vem se arrastando há sete anos. "Alguns políticos fazem demagogia, exploram a seca. Nós estamos fazendo obras", disse o presidente no dia, em crítica velada ao então governador, Miguel Arraes (PSB).

A empreiteira escolhida pelo Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs) para tocar a adutora foi a paulista Inkal, metida até o pescoço numa confusão que está sob o crivo da CPI do Judiciário. A empresa é a mesma que vem sendo investigada pela construção do prédio superfaturado do TRT paulista. O Dnocs dispensou o processo de licitação sob o argumento de que era uma emergência. A Inkal recebeu R$ 17,8 milhões pelo serviço, sendo que o maior empenho, de R$ 14,1 milhões, foi feito exatos quatro dias antes da visita presidencial. Procurada por ISTOÉ, a diretoria da construtora não retornou as ligações. Ainda resta 25% da obra por fazer e desta vez haverá licitação. A avaliação que alçou a adutora à condição de emergência em um ano eleitoral aparentemente foi revista pelo governo. A interrupção de obras importantes tem um custo para o País. A CPI da Obras Inacabadas concluiu, em 1995, que 2.214 construções abandonadas em todo o País haviam deixado um rombo de cerca de R$ 15 bilhões.

A irregularidade das chuvas castigou a lavoura. Para a pequena agricultora Máxima Maria de Jesus que vive com o marido, oito filhos e netos num pequeno terreno próximo à cidade de Parnamirim (PE), a chuva parca não foi de muita ajuda. "Esse verdinho nas plantas daqui a pouco vai para o beleléu." Todos os dias, ela caminha mais de um quilômetro para pegar água. A seca vem castigando também a zona da mata e o agreste. O secretário de Planejamento do governo Jarbas Vasconcelos (PMDB), José Arlindo Soares, conta que a perda de safra na zona da mata, tradicionalmente mais úmida, já chega a 75%. "É a primeira vez na história que vemos a região ser afetada desta forma."

Quase um ano depois da campanha do ano passado, outro importante compromisso do governo que não vingou foi a construção de 400 mil barragens subterrâneas em todo o Nordeste por assentados do Incra. O projeto foi inspirado na técnica desenvolvida pelo engenheiro José Artur Padilha, assessor do ministro Raul Jungmann. As barragens, feitas de pedra, são construídas ao longo do curso de rios e riachos que acumulam água no subsolo, evitando a perda da lavoura. A medida foi anunciada por Jungmann na edição de 17 de junho de ISTOÉ. Segundo a assessoria do ministro, cortes orçamentários defenestraram o projeto, retomado há cerca de um mês.

Além de salvar parte do plantio, havia a intenção de que 40 mil trabalhadores se engajassem na construção das barragens. Ao lado das questões climáticas, o emprego, mesmo que temporário, desempenha um papel fundamental para se combater a miséria do semi-árido ao injetar dinheiro na combalida economia sertaneja. "Não tem emprego, não adianta quebrar a cabeça", diz Naldo Araújo, que chegou a trabalhar como pedreiro para a Inkal, a alguns quilômetros de Ouricuri. Ele não viu a cor do dinheiro equivalente aos dois últimos meses de trabalho, encerrados no início do ano. "Entra ano, sai ano e é tudo a mesma coisa."

Como iniciativa emergencial, restam as frentes de trabalho, que hoje empregam cerca de 750 mil pessoas. A medida esteve por um triz. Com as primeiras chuvas e as pressões impostas pelas metas fiscais acertadas com o FMI, se fortaleceu dentro do governo a posição favorável ao seu fim. "Até 30 de abril não se sabia se o programa continuaria. Alguns entendiam que poderia ser interrompido", diz o ministro de Políticas Regionais, Ovídio de Angelis. As restrições financeiras se fizeram valer de qualquer maneira. O salário dos alistados caiu de R$ 80 para R$ 60. "A redução ocorreu por razões de natureza econômica, mas o corte será parcialmente compensado com condições de trabalho", justifica Ovídio, ao explicar que agora o trabalhador ficará próximo à sua moradia, poupando o dinheiro antes gasto com transporte.

 

Atraso Embora o governo ressalte que vem realizando "ao longo dos últimos anos ações estruturantes que estão promovendo a atividade econômica, propiciando ao meio rural condições de permanência no campo e convivência com a seca", como discorre um boletim da secretaria, no aperto nunca resta outra alternativa senão a de sempre: recorrer a programas de emergência como as frentes, a distribuição de cestas básicas e o abastecimento de água por carros-pipa. São ações com as quais o sertanejo conta, mas sofre com seu atraso. Apesar de o ministro garantir que o combate à seca é prioridade para o governo, os dois programas vêm sofrendo uma defasagem no desembolso efetivo de recursos que vai de dois a três meses, dependendo da localidade. "O governo dá lá suas explicações, pede que se espere. Mas a barriga não pode esperar um dia, quanto mais um mês. É preciso ver que é a fome de um povo que está em jogo", critica Carlos Batinga, prefeito de Monteiro, município do Cariri paraibano, que pagou as frentes de trabalho e distribuiu as cestas básicas de março apenas no início de maio.

Criadas em 1932 pelo ministro de Viação e Obras de Getúlio Vargas, o paraibano José Américo de Almeida, as frentes de trabalho refletem a inexistência de novas alternativas para que se resolva ou ao menos minimize o drama da seca. Para o economista Celso Furtado, primeiro superintendente da Sudene, não adianta mesmo tentar inventar algo novo. "O que é preciso fazer para mudar o Nordeste de fato é promover a transformação da sua estrutura agrária", diz, ao lembrar que a concentração de renda na região é brutal. Ele argumenta, no entanto, que o apoio político de peso conferido ao governo por representantes da oligarquia nordestina lhe tira a autonomia para enfrentar uma transformação desta ordem, emperrando a mudança.