A lembrança do pontificado de Bento XVI está cada vez mais distante do Vaticano, graças à personalidade solar do papa Francisco, eleito há seis meses. E, se ainda havia uma sombra do papado anterior, ela foi dissipada no sábado 31, com a substituição do secretário de Estado da Santa Sé, o polêmico cardeal Tarcisio Bertone, 78 anos, pelo arcebispo Pietro Parolin, uma das mais aguardadas reformas desta atual administração, que dará início a uma série de mudanças em outros cargos-chave, previstas para outubro. Durante os quase oito anos de pontificado de Joseph Ratzinger, poucas figuras acumularam tanto poder quanto o religioso italiano, que exercia um cargo semelhante ao de primeiro-ministro. Diante de um papa pouco afeito ao jogo político da cidade-estado, Bertone cresceu em importância e, em alguns círculos, chegou a ser visto como mais poderoso até que o sumo pontífice. O salesiano, fluente em italiano, francês, alemão, espanhol e português, deu inúmeras demonstrações públicas de seu poder – em entrevistas, por exemplo, discursava com liberdade típica de quem não presta contas a ninguém. Durante as solenidades, comportava-se quase como um vice-papa, extrapolando as suas atribuições como secretário de Estado. Mas foi internamente, longe dos olhos do 1,2 bilhão de fiéis católicos espalhados pelo mundo, que exerceu sua autoridade e influência de forma plena. A partir de documentos vazados no que ficou conhecido como o escândalo VatiLeaks, as histórias das vítimas (leia quadro) do projeto de poder do italiano foram reveladas, trazendo à tona o modus operandi do cardeal, que agia como um verdadeiro imperador.

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CORVOS E VÍBORAS
Tarcisio Bertone reclamou das polêmicas durante seu tempo como secretário de Estado

“Foram feitas acusações sobre mim – uma rede de corvos e víboras…”, teria reagido Bertone no domingo 1º, um dia depois de receber a notícia, ao final de uma missa da qual participou na Ilha da Sicília, região sul da Itália. “Mas isso não deve obscurecer o que considero um balanço positivo (dos anos como secretário de Estado). O religioso ainda fez um mea-culpa, dizendo que, se pudesse voltar no tempo, teria agido de modo diferente em alguns momentos, e aproveitou para reclamar de quem pensa que o secretário de Estado tem poder para decidir e controlar tudo. “Ele realmente não tem”, afirma o padre João Batista Libânio, teólogo jesuíta do Instituto Santo Inácio, em Belo Horizonte. “No Vaticano, quem tem o poder simbólico nem sempre é quem tem o poder real”, diz. Ou seja, donos de cargos e títulos importantes são frequentemente vencidos por uma teia de poder sem nome, que se manifesta por conchavos e armações.

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REFORMAS
Papa Francisco deve mexer em outros cargos-chave em outubro

É nesse verdadeiro ninho de cobras que chega, em outubro, o novo secretário de Estado, também anunciado no último dia 31. “Sinto o peso da responsabilidade dada a mim: este chamado me confia uma missão difícil e desafiadora, diante da qual minhas forças são fracas e minhas habilidades poucas”, disse o italiano Pietro Parolin, 58 anos, até então núncio apostólico – cargo equivalente ao de embaixador da Santa Sé – na Venezuela. “Me coloco a serviço do Evangelho, da Igreja e do papa Francisco com ansiedade, mas também com confiança e serenidade.” A humildade do novo secretário só rivaliza com sua experiência e competência para assumir o cargo. Nascido na cidade de Schiavon, que pertence à Diocese de Vicenza, Parolin fez história na diplomacia da Santa Sé, tendo servido a dois papas, três secretários de Estado e quatro ministros de relações exteriores. Tem passagens por cargos menores da Secretaria de Estado, atuou como núncio apostólico no México, na Nigéria e na Venezuela e participou de importantes negociações envolvendo países como China e Vietnã, além de debates espinhosos como o do desarmamento nuclear. “É um homem que sabe defender as posições da Santa Sé sem ofender ou alienar as pessoas”, disse um diplomata europeu, que preferiu não se identificar, ao vaticanista Gerard O’Connell, do jornal italiano “La Stampa”.

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DIPLOMATA
Pietro Parolin, o novo secretário de Estado,
tem perfil conciliador e vasta experiência internacional

Com perfil conciliador, experiência na Cúria e grande bagagem internacional – principalmente fora da Europa –, especialistas já tentam entender o que a escolha de Parolin diz sobre o papado de Francisco. Para alguns, ao nomear para secretário de Estado um diplomata de carreira, o argentino reforça sua veia reformadora, mas mostra também que pretende preservar uma das maiores conquistas da Igreja em seus dois mil anos de história: o peso político e cultural. Nesse sentido, Francisco reformaria para resgatar um tempo de glórias, não para criar um momento novo a partir de mudanças de rumo inéditas. “É um sinal importante, mas que deve tomar um rumo de reforma só a partir de outubro”, diz o padre Jesus Hortal, jesuíta, professor e ex-reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, especialista em história da Igreja. Certeza, por enquanto, só uma: foi-se o tempo de Bertone.

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